domingo, 27 de dezembro de 2009

Inspirado em Adélia Prado...

No amor não cabe a dureza e,

como é coisa de parceria,

cada um tem que um pouco amolecer.

Mas e os durões, como fazer?

Têm que deixar na frente o coração,

que a razão se perdeu tem tempo

e amar rima com espairecer

(mesmo depois de ralar

e deixar a cabeça cansada

de tanto pensar).

Espairecer é como espraiar :

é parente de remanchar

que minha bisavó falava remanchear,

que nasce em remanso,

cresce em chiar,

e dá preguiça só de pensar...

É que amar não é dureza não!


COMEÇO DE APRENDIZAGEM

(Adélia Prado)

Amor é ofício de a dois,

plantada estrela por dois.

amor no peito de um só,

perdido de parelha,

solitário de aurora,

não é amor: é uma dor

que não dá fruto nem dá flor.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Noite de Natal

Essa época de festas de fim de ano é confusa, para mim, em todos os sentidos. A correria, os engarrafamentos, a pressa, a rua e os lugares todos cheios, é como se o tempo não coubesse nos espaços de que dispomos. É uma busca frenética, como se algo houvesse a preencher, a hora fatal estivesse chegando e ainda o vazio insistisse e persistisse. Talvez a gente tenha perdido algo irrecuperável e não tenha retorno. Não sei, algo que nos tenha escapado por entre os dedos, areia de praia em mão de criança...

Lembro da primeira bicicleta, uma Monark verde musgo, modelo BR 65, aro 26, na qual teimei em andar mesmo dentro de casa, pneus vazios, minha mãe reclamando e minha avó sentenciando: “deixa o menino experimentar o presente, é Natal”. Minha mãe quase sempre se curvava às decisões da minha avó. Quando não, ficavam sem se falar por séculos. Naquela noite, o espírito de Natal prevaleceu e eu pedalei pela sala até o elevador sem conseguir fazer a volta... Minha avó ajudou, virando a bicicleta e me propiciando mais uma breve pedalada. Naquela bicicleta percorri muitos continentes, desbravei incontáveis matas, trilhei tantos caminhos coloridos que marquei com arco-íris o meu olhar. Muito joelho ralado, esporros, curativos, meu tio passando Iodex no machucado e contando estórias de soldados que se feriram na guerra. Heróis! Naquela noite em que ganhei a bicicleta, senti uma das maiores alegrias de que me lembro.

Não tenho certeza se foi a mesma, mas talvez esta tenha sido também a minha primeira noite triste de Natal. As imagens são muito vivas, era noite e eu vi um menino negro, descalço, passando em frente ao prédio em que morava. A gente chamava os meninos pobres, freqüentemente negros ou mulatos que perambulavam pelas ruas, de moleques do morro. Eles moravam nas favelas vizinhas e eram temidos por não cumprirem as mesmas regras que nós e por serem brigões. Tinham pouco a perder. Além disso, dizia-se que roubavam. Eu nunca havia visto nada que justificasse a fama e até nutria uma inveja secreta pela liberdade que eles revelavam na intimidade que tinham com a rua, no jeito despreocupado com que vagabundamente vagavam pelo espaço que até parecia lhes pertencer. Só muito tempo depois, descobri que o espaço que tinham era quase nenhum: moravam em casebres apertados, todos num mesmo cômodo freqüentemente... O chão de terra, como das casas da roça, tinha marcas de pingos das goteiras crônicas, pras quais já havia até vasilhas previamente reservadas... Daí estenderem até as ruas as suas casas. Eu, na minha infância superprotegida, os invejava. Afinal, eles não iam à escola - e qual criança gosta da escola? - e não tinham mães pegando nos seus pés o dia todo (pelo menos era isso que eu achava), mandando ou proibindo de fazer coisas. Naquela noite, passou aquele menino que até hoje mora na minha cabeça: de short e sem camisa, descalço, chutava as poças não como diversão, nem por raiva. Era um sentimento que uma palavra talvez não comporte. Chateado, tinha tristeza misturada com revolta - que é parente da raiva - no olhar. Isso, eu senti ou imaginei, pois seus olhos miravam o chão todo o tempo. Mas o que ele tinha no peito contrastava violentamente com as luzes da rua e com o seu brilho refletido na água da chuva refrescante do verão. E é algo que eu sinto até hoje: um pouco da minha alegria ficou ali.

Meus Natais ficaram para sempre marcados. Saúde, paz, amor, alegria, fartura, presentes, beijos, abraços, tudo isso eu desejo a todos, mesmo sabendo que ao deitar, depois da festa, vou estar um pouco triste.

domingo, 8 de novembro de 2009

O Caroço e a Verdade





Outro dia, uma amiga que leu a última página que escrevi sobre o Hilbem, aliás, Caroço, me disse que estava desconfiada de que ele era eu. E de que ele seria um personagem criado por mim pra escrever o que quisesse sem me comprometer. Como se isso fosse possível: escrever sem compromisso, viver sem compromisso, falar de alguém sem compromisso...
Há de ter aqueles que podem. Eu não consigo. Estou nessa vida até o último fio de cabelo e não vejo como não estar compromissado de forma absoluta com ela. Por isso, não acredito em neutralidades, imparcialidades, corpos inertes e outras coisas que nos contam como verdades. Como vivo em função daquilo em que acredito, esta é a minha verdade. E acredito que tudo está em contato, tudo está misturado, que a pureza é uma grande fantasia. Mas afinal, o que é a Verdade? Quais as verdades em que acreditamos e a que nos curvamos? Quais contamos, passamos adiante? Que olhar apreendeu aquela realidade e que língua a contou? Pintados por quais vivências foram aquele olhar e aquela boca?
O Caroço é cego de um olho... Mas enxerga mais do que muitos videntes. Resolvi postar sua foto pra que não fiquem dúvidas: ele existe. É mais uma pessoa nesse mundão enorme. Um solitário, um cara que vive nas beiras da nossa cidade, sábio a seu jeito, vendo a vida com o olho que lhe restou e a contando com a boca que amargou grandes dissabores. Sobrou-lhe a infinita liberdade dos despossuídos: o que tem a perder é muito pouco. Restou um pouco de saúde - suficiente para sobreviver a um dia inteiro tomando genebra e para trombetear aos quatro ventos suas crenças e descrenças -, uma corrente tão grossa como barata que lhe pesa no pescoço e uma história que somente a ele pertence. E um compromisso absoluto consigo mesmo: com o seu tempo e suas poucas coisas. A sua Verdade.
Nesta semana, soube de outra novidade sua: ele não lava suas roupas. Onde mora, não tem onde fazê-lo, nem onde secá-las. Então, a solução é usar as roupas ao máximo, até onde sua vaidade permite e depois jogá-las fora. E ao explicar sua metodologia, me deu um sorriso irônico e denunciou com sua voz potente: “estilo de rico: usou, jogou fora. E ainda ajudo os pobres: se alguém está precisando muito, pode pegar, lavar e usar...” Perguntei-lhe então sobre uma calça de linho bege, alinhada, fina, com a qual eu o havia visto uma vez, tempos atrás. Ele simplesmente respondeu: “sujou...”

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Hilbem, o Caroço menino e a Almafotologia

Ontem, reencontrei o Caroço. E, ao contrário das outras vezes em que conversamos, dessa vez eu o ouvi melhor, talvez sem o preconceito de vê-lo como uma figura folclórica e engraçada. Ele não estava servindo os fregueses, mas bebendo alguma coisa que não identifiquei o que era. Sentei-me ao seu lado na única mesa em que havia uma cadeira disponível. Ele sintonizava alguma estação no radinho de pilha ligado ao ouvido por um redifone. Parecia pensativo ou talvez triste. Como sempre, filosofava e bradava suas percepções com uma voz poderosa como a de um alto-falante. Sempre com o redifone no ouvido, falou que “a vida é um mistério”... “Mas é boa”, continuou. E a seguir, “só sinto saudade da minha infância”. Perguntei-lhe de onde era: “Roraima”, disse. “Sou filho de índia. Meu pai pegou ela na aldeia. Eu só vim a saber com uns oito anos. Mas tive estudo. Fiquei sete anos em colégio de padre, mas logo, logo já era independente. Aí, rodei por isso aí tudo e vim parar aqui no Rio de Janeiro. Mas conheço todo o Brasil, de norte a sul.” Perguntei do que sentia mais saudade e ele falou: “Do rio. Tomava banho, nadava, deitava em cima dos troncos de árvore e era como se fosse uma canoa, ia pra todo canto em cima dele...”
Contei que há meses, ele se tornara personagem do meu blog. “Bloco?” indagou ele. “Não, blog, é um negócio que a gente escreve na internet”, simplifiquei, com preguiça de explicar. “Eu escrevi sobre o teu nome e o apelido de Caroço”. Então, ele murmurou, como que pensativo, reflexivo: “Hiiilbemmm”. “O queee???, perguntei”. E ele: “Hilbem, meu nome”! “Porra, Caroço, o nome que você me deu naquele dia foi outro, parecido com Washington”, reclamei, quase pulando da cadeira. Então, ele me respondeu com a maior segurança e serenidade, sorrindo com o único olho que via: “Mas nesse dia eu não tava falando da infância. Com infância não se mente, não se brinca... Quer dizer, se brinca, claro que sim, não é disso que eu tô falando”, disse, já rindo com a confusão do sentido das palavras. E ficou olhando pra longe com o único olho que enxergava e tinha uma saudade feliz no olhar, como se naquele instante, ele estivesse navegando pelo seu rio da infância. Seu olho cego, o direito, me incomodava e perguntei: “como você perdeu a vista?” Eu trabalhava na firma de gelo, fui encher o pneu do triciclo e não sabia usar a bomba, aí ela pulou que nem uma cobra e veio no meu olho. Tratei mais de 30 dias até que o médico disse, ‘não tem jeito, cegou’. Fazer o que? Eu não tinha experiência, acontece. Mas tratei mais de um mês. Só que não teve jeito. Fui lá na Pasteur naqueles médicos de vista... Almafotologistas, né?"
Ele chamou o rapaz que servia, pediu uma genebra pra garganta dele que estava “seca” e eu me levantei, pensando que o Caroço sabia de muito mais coisa do que eu imaginava. Talvez até de uma etimologia emocional ou coisa assim: Almafotologista...

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Estou me tornando um blogueiro mensalista... De repente, me dou conta que não escrevo há muito tempo. Hoje, resolvi postar uma poesia que fiz pra minha filhota, quando ela escrevia umas rimas pobres como as que as crianças adoram porque têm poesia no olhar.


Não precisa rimar

Ser poeta é ter o olhar desprevenido
pra se assustar e se encantar ,
se alegrar ou chorar,
se emocionar à toa
com as mais pequenas e
simples coisas da vida.
Mas é também necessário
saber lidar com as palavras,
tratá-las com respeito
e carinho,
ser fiel e não traí-las jamais
porque elas são muito sensíveis
e podem fugir magoadas,
se são desrespeitadas
e nunca mais voltar.
Há que ter também um método
que pode ser qualquer um,
desde que acasale
a emoção com as palavras
sem deixá-las brigar,
e aí é só deixar
a respiração fazer o resto
e o instante eterno fica:
uma poesia nasceu.

quarta-feira, 8 de abril de 2009

A formiga e a flor - 16 de novembro de 2008

Talvez só tenha aprendido a guardar segredos...
Mágoas também - mesmo sem querer - tenho que reconhecer,
apesar da vergonha,ficam escondidas em algum canto de mim
e afloram, estúpidas,
a me reviver o que nunca desejei sentir.
Mas os cheiros, sabores,
as belezas todas que colhi e colho,
nunca as guardei só pra mim.
É como se no meu peito não coubessem e escapassem,
me obrigando a dividi-las.
E esse compartilhar me fez ter muitas coisas
sem ter nada guardado.
Por isso, talvez, tenho tudo e tenho nada
sou livre na minha pobreza
e feliz e em paz com minha riqueza.
Isso tudo eu falei pra contar
que eu vi uma formiga carregando uma flor!
É! Eu vi uma minúscula formiga
carregando uma mais minúscula ainda flor!
E me encantei com o insólito e surpreendente da rara cena,
mesmo sem ilusões de que a formiga estivesse
levando a flor para a sua amada.
Nada disso! Pelo jeito como era carregada,
não seria certamente um banquete
ou sequer um petisco especial.
Não! É mais provável mesmo que fosse refeição trivial.
Mas quando eu vi uma formiga carregando uma flor,
uma pequenina formiga carregando uma singela flor,
eu pude ver que a beleza está no olhar
quando este consegue ver a vida seguindo, inevitável.
E me enchi de esperança ao descobrir,
além da alimentar cadeia
que nos aprisiona, liberta ou consome,
a beleza que se esconde mesmo na morte,
que pode ser no fim das contas
a refeição mais banal.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Saúde metálica

“Eu sempre tive uma saúde de ferro, até que apareceu esse câncer”. Foi isso que aquele homem emagrecido e desbotado me disse logo que entrou e sentou-se à minha frente no consultório. Tinha um olhar meio embaçado pelo cansaço dos tratamentos a que vinha se submetendo e pela desesperança. Mas também tinha a expressão incrédula de quem talvez sentisse a imortalidade dos adolescentes até ser pego no contrapé pela doença.
“Eu levantava cedinho todo santo dia e, no final da noite, deitava, cansado de trabalhar direto e aí, dormia em um minuto. Igual a uma pedra! Nunca soube o que é insônia. Nem gripe, dor de cabeça, nada. Nunca faltei ao trabalho por causa de doença. Só quando meu pai morreu e, mesmo assim, só um dia, apesar de ter direito a licença maior. Foi só pra resolver aquela coisa chata de atestado de óbito, liberar o corpo e enterrar. Agora, de repente, aparece esse câncer...”.
Essa conversa de saúde de ferro revela uma armadilha que está posta à nossa frente. Se a gente vai ao dicionário, vê que o ferro, na maior parte das vezes está associado a dureza, resistência, capacidade de suportar carga, além de, no sentido figurado, poder significar cruel, desumano!!! É, tá lá no Aurélio... E será que é essa a saúde que queremos ter? Aliás, qual é a saúde ideal? Ou o que é saúde?
A saúde tem definições oficiais, como a da Organização Mundial de Saúde, que afirma ser ela “o perfeito bem-estar físico, mental e social”, seja lá o que isso for! Afinal, que diabos é a perfeição? Já disse há tempos nosso ex-ministro artista e filósofo Gil que “a perfeição é uma meta defendida pelo goleiro que joga na seleção, e eu não sou Pelé nem nada, se muito for, eu sou o Tostão”. Portanto, fica difícil ter saúde pela definição da OMS, a não ser pro Pelé... Com certeza nem o Edson (Arantes do Nascimento) tem saúde! A verdade é que saúde é um conceito que faz parte do grande elenco das subjetividades. E, como tal, tem contornos indefiníveis para qualquer forma de generalização, sendo, portanto, muito variável e dependente da experiência pessoal. Assim, pode até mesmo significar dureza, pra quem gosta do ferro e o tem como metal ideal.
Quanto a mim, eu sei, por exemplo, que não quero nem o brilho do ouro, pois serei muito desejado e poderei me tornar arrogante. Assim como não quero ter o peso cinza e depressivo do chumbo, que me lembra nuvens pesadas de tempestades e ausência de sol. Por outro lado, quero ter do bronze o som, como o Milton tem na garganta. Quero também a maleabilidade do cobre pra saber a hora de me curvar e resistir às ventanias, quero a sua condutibilidade pra deixar fluir a energia, compartilhar saberes, semear laços... Do mercúrio, quero o movimento mas não a intangibilidade, da prata, a lua cheia com todas as suas paixões e poesias.
E do ferro, sinceramente, desejo a dureza, mas para apenas uma pequena (mas nem tanto) parte do meu corpo. E, mesmo assim, somente em alguns momentos. Afinal, “eu não sou de ferro...”.

segunda-feira, 9 de março de 2009

Caroço

O calor infernal pedia uma cerveja. Parei em frente ao boteco e aproveitei uma mesa vazia ao lado da porta para sentar. Ali pelo menos corria um arzinho. Chamei o homem que servia e pedi uma Boehmia bem gelada. Rapidamente, ele trouxe uma garrafa esbranquiçada por uma poeira de gelo. Prometia... O primeiro gole, amazônico, não deu conta de irrigar totalmente a sede. Bebi mais um golinho e relaxei na cadeira. Um cara de outra mesa chama o homem:
“Caroço, traz outra Skol, mas bem gelada, que essa aqui não tava boa, não”.
Ele responde: “você fica conversando em vez de beber, ela esquenta”.
Eu assistia àquilo com olhos de passarinho. Explico: me sentia empoleirado numa nuvem sem obstáculos e aguardando o vento. Sem nada nem ninguém pra atrapalhar o horizonte. Qualquer problema, “elas passarão, eu passarinho”!...
Chamei o Caroço e indaguei respeitosamente: “Posso te fazer uma pergunta?”
“Pode”, ele respondeu.
“Porque te chamam de Caroço?”
“É que eu tinha um caroço na testa. Do tamanho de uma laranja. Era um quisto. Fiquei com ele 17 anos e agora tem 12 que eu tirei. Aí, o Caroço ficou, só me chamam assim.”
“E qual é o seu nome?
“Úlissom. Escreve assim (me mostra a carteira e soletra: u, ele, i, esse esse, ó, eme). E fala Úlissom”, diz, enfatizando a tônica no u.
“É mais fácil Caroço, né?”, pergunto.
“Minha mãe foi quem me registrou. Meu pai largou ela antes de eu nascer. Ela quis dar o nome do meu avô, pai dela, que era Wilson, mas não sabia escrever, aí botou Úlissom.
Aí ficou. Eu não ligo pra me chamarem de Caroço. É até mais fácil. Tá boa a cerveja?”
“Tá”, respondi, pensando em quanto ele me falara de si diante de uma simples pergunta.
Chega um sujeito na mesa do que tomava a Skol e fala:
“Calorão, hein?” E prossegue, diante da concordância gestual do outro, abanando o rosto com as duas mãos:
“Rapaz, essa massa de ar quente, quando fica estacionada é foda! Não deixa chegar nenhum ventinho, aí fica esse abafamento danado. E ainda tem o aquecimento global por causa do derretimento dos pólos. Até pro urso polar tá pegando, porque ele precisa de frio. Tem um pelo grosso demais, aí sofre muito com esse calorão. Não sei como é que vai ficar, não. Pode ser que melhore agora com o Obama... O cara é mulato, deve ter passado por muita parada dura pra chegar onde chegou.”
Desliguei os ouvidos e lembrei do Stanislaw Ponte Preta e o seu “Samba do crioulo doido.” Paguei a cerveja pro Caroço e fui embora, com a imagem dos pólos derretendo. Preocupado com o clima, com o futuro da vida e com as representações que cada um de nós faz das informações que colhemos. E pensei também nas moças do tempo que, sempre gostosas, nos fazem meteorologistas amadores. Imaginei a cena de um urso polar suando e pensei que até então, nunca tinha ouvido falar do Obama como mulato. Só como negro. Será que ainda existe a palavra mulato ou só quando se fala de sambistas gostosas?
E o calor continua do Saara...

sábado, 14 de fevereiro de 2009

O ovo redimido

Finalmente! Depois de tanta injustiça, a verdade ressurgiu. Acho que todos temos um compromisso com ela, seja ela o que for. Na verdade, verdade e realidade dependem do sujeito, como a beleza do olhar. Já disse o poeta Djavan:
“...isso eu já não posso esquecer,
porque não foi só visão, o coração sentiu...”
Daí que a verdade é de cada um, como o céu é das andorinhas no verão. E a aporrinhação de mais um céu nublado nesse verão da zona de convergência do Atlântico é o combustível que me faz sentar pra escrever num sábado de manhã.
Mas, vamos ao que interessa: o ovo foi absolvido!!! A Ciência, hoje sábia como todo coração, absolveu o ovo. Ele não faz mal pra saúde dos humanos, felizmente! Não aumenta de maneira significativa o colesterol, como essa mesma Ciência sentenciava até anteontem... Aliás, é um alimento tão poderoso, tão rico em vitaminas e outras maravilhosas microscópicas substâncias - sabe-se agora - que quase pode ser considerado imprescindível a uma boa saúde. Em vez daqueles magros dois ovos por semana (na chapa, óbvio, pra não piorar as coisas), podemos consumir até um por dia, sem culpa. Assim, o sonho de dois ovos estrelados (embora eu prefira chamá-los, como dizia em criança, estalados) sendo comidos lentamente, pode realizar-se, bastando para isso não comer nenhum na véspera. É simples: primeiro a clara, é claro, circundando a gema com o garfo, com maestria e precisão cirúrgicas para deixá-la completamente nua. Retirado o véu da noiva, finalmente a protagonista: como um sol, miolo de margarida despetalada num bem-me-quer, mal-me-quer terminado em bem-me-quer, ela. Antigamente considerada um poço de colesterol ruim, depósito de lixo entupidor de artérias, a agora finalmente redimida gema ressurge triunfal. “Não sou malvada como disseram durante tanto tempo”, diria ela. “Não penso em processar ninguém por perdas materiais. Mas numa ação por danos morais, eu vou pensar seriamente. Depois de consultar advogados amigos (se é que se pode acreditar nisso), eu vou resolver. Afinal, só eu sei o que passei nesses anos todos: a exclusão, o abandono, a maledicência... Em momento algum se pensou que de mim brotavam vidas... Eu não poderia ser tão ruim assim”! Assim como a manteiga, banida por tanto tempo e substituída pelas insuportáveis e arrogantes margarinas pretensamente saudáveis, até que a Ciência despertasse, agora o ovo volta à mesa. E com classe: “alimento quase completo”!
Enquanto escrevo, me lembro o tempo todo do meu pai: ele comia misturadas a gema e a clara. Mas o final era apoteótico: o miolo do pão francês esfregado no prato pousava dourado na sua boca, que demorava o tempo preciso para engolir, findando o prazer. E isso se repetia várias vezes, até o prato ficar tão limpo, que dava pra acreditar ter sido lavado. E meu pai comia sempre de dois em dois. Dizia que só um não satisfazia. Outras vezes, comia – sempre dois – ovos esparramados no arroz branco. Mas sempre tinha um miolo de pão branco para os acordes finais. Até quando era um bife à cavalo que, aliás, é um lindo nome prum bife!
Mas a questão é a seguinte: quem foram os cientistas que condenaram o ovo? E a manteiga (lembro de minha vó Dolores batendo a nata do leite pra fazer a manteiga mais gostosa que já comi), quem a exilou de nossas vidas por tanto tempo, substituindo-a pela plástica margarina? Não terá sido isso um crime contra a humanidade? Que interesses econômicos estarão por trás desses sábios cientistas que nos guiam para a escuridão? Precisamos, sim, acreditar menos na Ciência e mais em nossos corações; em nossas tradições, em nossa história e sermos muito críticos com as estórias que nos contam a Ciência e todos os que estão no poder.
Convido, por isso, todo mundo a comer um (podem ser dois) ovo frito com pão francês, a se lambuzar de gema e lamber os lábios sem culpa, inocente como criança.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Alma de vira-lata


A Marcia não conseguiu ver a foto da Dina no meu orkut. Descobri que o álbum estava aberto só para os amigos. E a Marcia não é minha amiga... No orkut. Ela não tem , aí pega carona no dos filhos. É quase uma fantasma orkutiana. Fica lá voyeurando... Diz que não quer se expor, por isso não tem. Aí, não é minha amiga, então tenho que abrir o álbum em que está a foto da Dina para que ela a veja. Interessante essa pós-modernidade: blogs, orkut, amigos, etc. Li no jornal de hoje que a Casa Branca vai ter blog... A exposição e a intimidade se confrontam a todo instante em nossas vidas, meu perfil está pregado no poste, como resultado do jogo do bicho.
A Dina foi uma cachorra especial. Quem a conheceu sabe disso. Boêmia, adorava uma cerveja e cantar! Era namoradeira, e foi mãe generosa e devotada. Teve mais de 20 belos filhotes espalhados pela cidade. Grande protetora, foi uma verdadeira anja (anjo tem sexo, sim) da guarda numa época em que eu desconhecia a morte e, por isso, não ligava pra gastar as vidas que tinha. O fato de ela cantar facilitava bastante sua vida boêmia: era muito fácil arrumar uma carninha, um osso ou um ovo cozido, sua comida favorita. Ela o descascava com os dentes, prendendo-o com a pata. Depois o comia em duas mordidas. Antes, era só cantar um pouco. Qualquer balconista ou dono de bar ficava embasbacado e liberava a comida. Eu apontava o ovo, dizendo que ela o descascava, provocando uma dúvida reticente, já que era uma cachorra que cantava...
Ela era uma pointer, perdigueira, caçadora de perdizes, não podia ver um galinheiro que era encrenca na certa. Os pombos também a encantavam, mas não tanto. Tinha pedigree, apesar de eu nunca tê-la registrado, pois era caro. Seu nome oficial, nos documentos, era Afrodith of Tranquility (seu pai, Arthur of Tranquility, havia sido campeão e foi seu primeiro namorado, num rumoroso caso de incesto, quando ela ainda tinha oito meses). Mas sua alma era de vira-lata e deixou a nobreza de lado para conhecer o mundo real. Não dava pra chamá-la de Afrodite, apesar do seu pendor para as paixões e o amor (ela teve um amor duradouro, o Flight, em cuja companhia ficava radiante sempre), então lhe dei o nome de Dina, homenagem à mãe, não sei se verdadeira ou adotiva, do Gonzaguinha, citada em algumas de suas músicas.
Dina era nome de vira-lata e foi pensando nela e em mim que escrevi

Alma de vira-lata

Perambulo por aí,
bato pernas a esmo, passeio,
as ruas são minhas,
os cantos, as tocas,
recantos e encantos
da cidade são meus.
Nenhum muro me cerca,
nenhum olhar me vigia
nenhum senhor me dirige,

Minha alma livre
me anima e me leva:
sou dono do tempo
e o vento sou eu.
Alma de vira-lata,
ama o instante,
navega nas nuvens,
segue seu rumo torto,
voa,
a pressa, carrega no bolso,
a paz, no coração...

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Segunda-feira, e estou de volta de Maracangalha... Foram alguns dias sem pensar em trabalho, contas, compromissos, só esperando a chuva passar pra poder ir até a praia e pescar. Demorou um pouco: a Zona de convergência do Atlântico, substituta das massas polares e das frentes frias, velhas conhecidas, é a mais nova estrela das previsões meteorológicas. E só deu ela nesse verão molhado e frio, meio com cara de agosto, mês das previsões sombrias...
Mas na sexta-feira de manhã, finalmente, o sol saiu tímido, trazendo esperança de praia e peixe. Lá fui eu e, aqui, vou relatar minhas façanhas de pescador - amador, claro, nem deveria me preocupar em esclarecer, mas é bom, em respeito àqueles que saem de madrugada diariamente pra essa lida tão árdua quanto romantizada. Antes de começar, quero alertar que estórias de pescador amador são mutantes, crescentes, amadurecem, florescem e frutificam com o tempo, e devem ser ouvidas com o coração aberto. É que pescar nos remete à nossa ancestralidade mais remota, quando caçávamos e pescávamos para comer. Mais do que comer, para matar a fome. Não tinha dispensa, armário na cozinha guardando alimentos pro dia seguinte... Era correr atrás da comida de daqui a pouco. Como nas casas das pessoas muito pobres: não tem comida guardada, não tem dinheiro no banco, poupança, nem cofrinho com moedinhas pra tirar do sufoco. O que se ganha, se consome no dia, na hora. Amanhã é outro dia, outra luta, outra caçada...
Enfim, creio que esse passado está impresso em nosso inconsciente e justifica esse fascinante percurso que as vivências dos pescadores percorrem desde o fato até a versão. E eu, na sexta-feira, após alguns camarões perdidos no mar agitado, resolvi tentar jogar os anzóis entre umas pedras, num lugar em que havia o risco de perder isca, anzol, chumbo, todo o material... Bem, no primeiro arremesso, logo de cara, consegui acertar bem no poço que mirara e, em instantes, dois marimbás bem crescidinhos aportavam na areia. Aqui cabe um parênteses: quem nunca trouxe um peixe pra areia, puxando a linha e sentindo sua resistência depois da mordida inicial, da beliscada que, dizem os mais experientes, varia de forma muito clara entre as diversas espécies, não sentiu uma emoção parente do grito primal. E o fato, inquestionável, mesmo que vocês pensem que se trata da minha versão, foi que veio um marimbá atrás do outro, o que me fez resistir bravamente à chuva que ia e vinha, disputando a praia com um sol tímido, que chegava com preguiça e não firmava. Depois de limpar os peixes, feliz e orgulhoso, voltei para a casa em que estávamos , com uma sensação maravilhosa de dever (bem) cumprido, mas também com as coxas todas queimadas por um mormaço invisível. A pele ficou grená, como a cor do Fluminense. Foi um tal de passar creme hidratante toda hora, já que ardia igual queimadura de fogo, que tive que ficar de pijama até domingo em casa, sem querer nem poder saber do sol que, então, saiu abusado da toca.
Bem, agora que voltei de Maracangalha, é encarar as contas, responsabilidades, cair de cara na realidade e sair contando, me perguntem ou não, que pesquei tantos marimbás que até perdi a conta... É verdade, já nem sei mais quantos foram. Isso sem falar no tamanho deles: tinha uns, que eu nunca tinha visto tão grandes! Verdade mesmo! Pena que não tinha máquina pra fotografar e meu celular é só telefone... Da próxima vez, não esqueço, tenho que levar uma máquina, se não as pessoas ficam achando que estou mentindo. E eles eram muitos! E muito grandes! Eu juro!

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009


Eu vou pra Maracangalha, eu vou...
Quando era criança, lá pelos meus 8, 9 anos, passávamos férias no sítio de minha avó. Vó Dolores era também minha madrinha e isso me dava uma certa sensação de superioridade com relação aos primos. Não havia diferença no tratamento, mas tinha o título de afilhado. Só isso bastava.
Recentemente, passei pelo sítio, vendido por ela há mais de 40 anos, que fica às margens da Dutra e parei para dar uma olhada. Era o sítio da vovó, apesar de que parecia menor. Os caminhos por onde andávamos, a distância entre as árvores, o terreiro onde jogávamos aguerridas peladas... Tudo era infinitamente menor do que nas minhas lembranças. Tirei umas fotos e segui viagem, lembrando da primeira bicicleta e dos primeiros tombos de cima dela. O primeiro e único passarinho que matei, para ser igual aos primos e meninos da vizinhança, e da vergonha que senti imediatamente. A sensação de ser um covarde, ao ver aquele serzinho inerte na minha mão, as penas sujas de sangue, a impossibilidade de novos vôos, novos cantos. Lembrei com enorme saudade do Bastião, negro de pernas deformadas que era caseiro do sítio e tocava à noite uns calangos no cavaquinho, afastando a sua solidão e a minha, que temia fantasmas, monstros e ladrões. Havia algumas noites em que uma buzina diferente, potente e com várias notas iluminava a noite com o seu som. Era um caminhão que às vezes víamos no posto de gasolina estacionado pela manhã, quando seu motorista resolvera pernoitar por ali. Algumas noites, ele passava sem parar e buzinava, saudando o pessoal do posto. Nos arredores, na beira da estrada, em baixo de uns eucaliptos, de vez em quando acampavam ciganos e, aí, os mais velhos nos proibiam de perambular por ali sozinhos: eles roubavam crianças, nos diziam.
Quando saíamos do Rio para o sítio, cantávamos, alegres, antecipando os momentos que certamente viriam: eu vou pra Maracangalha, eu vou... Maracangalha era o nome do sítio. Ficou para trás no tempo e continua presente no coração, apesar de que o sítio que parei para ver e que fotografei recentemente (a foto aí de cima), não é mais o mesmo. Tem a casa igual, a mesma varanda, o mesmo desenho do telhado, visto do alto. Árvores desapareceram, umas novas surgiram, mas a verdade é que não estamos mais lá. Não há mais os eucaliptos da beira da estrada, a mata, ao fundo, minha vó, os primos, a algazarra das crianças... Apesar disso, a visão dele me enche de uma alegria saudosa, diferente daquela que nos faz gargalhar. E uma alegria contida por saber que é história. Passou e ficou somente dentro de cada um que a viveu.
Vou viajar daqui a pouco e a sensação é a mesma: uns dias de férias, a despreocupação de um tempo sem as obrigações da vida de adulto, eu vou pra Maracangalha, eu vou...






sábado, 17 de janeiro de 2009

Há um tempo, atendi no consultório um conhecido escritor. Sofria de uma crônica angústia. Quando chegava um certo dia da semana, ele começava a sentir medo de não conseguir escrever sua crônica semanal a tempo de enviá-la aos jornais. Ele nunca deixou de fazê-lo, mas sempre sofria achando que não ia conseguir. Agora, desde que inventei essa história de blog, comecei a me cobrar escrever alguma coisa. E aí, me lembrei dele e sua crônica angústia com relação à crônica... Só que eu não tenho obrigação com o tempo (crônica, substantivo ou adjetivo, penso hoje pela primeira vez, tem a ver com cronos). Mas percebi que, ao criar o blog, pensei num espaço pra escrever minhas incertezas. Não pensei no tempo. E agora, estou pensando: tenho que ter alguma regularidade para postar um material? Que compromisso tenho com quem vai ler? Quem vai ler? Devo fidelidade aos leitores? Responsabilidades, cobranças, culpas, ninguém estuda em colégio de padre e sai incólume...
Está resolvido que só vou postar alguma coisa quando achar que presta e que tem a ver com o compromisso que tenho comigo, com a minha vida. Quero a beleza, o aprimoramento, a solidariedade, coisas assim. E no mais, vou escrevendo quando me der na telha (telha como cabeça é muito bom!). Ou no coração.
Hoje, de manhã fui pescar. Nada. Só o Nino que pescou um carapicu. (O corretor ortográfico sinaliza em vermelho carapicu. Fui ver sua sugestão de correção: cárpico!!! Que ignorância. É claro que ele não conhece o Tupi, mas mandar uma proparoxítona dessas....). Fui pro Google (estou sem dicionário em casa e no computador...) e descobri: akará pukú è cará = peixe de escamas e picu (pucu) = comprido. Então, foi isso que o Nino pescou: um peixe de escamas comprido...
Não sei como, de peixe fui pra perereca e daí, resolvi deixar por aqui uma poesia que fiz pra uma delas, verdinha, que encontrei dia desses perdida numa chuvarada...



A PERERECA ATÔNITA

Descida na enxurrada,
sem querer nada
ou quase nada,
encontro na calçada
uma perereca atônita.

De um ímpar verde, quase par
com as folhas mais juvenis,
lhe assustam os passos,
o cimento, os carros.
E se pergunta:
“onde eu vim parar?”,
enquanto quem passa,
se espanta ou se encanta
com sua cor, sua forma típica,
seu aspecto singular.