quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Alma de vira-lata


A Marcia não conseguiu ver a foto da Dina no meu orkut. Descobri que o álbum estava aberto só para os amigos. E a Marcia não é minha amiga... No orkut. Ela não tem , aí pega carona no dos filhos. É quase uma fantasma orkutiana. Fica lá voyeurando... Diz que não quer se expor, por isso não tem. Aí, não é minha amiga, então tenho que abrir o álbum em que está a foto da Dina para que ela a veja. Interessante essa pós-modernidade: blogs, orkut, amigos, etc. Li no jornal de hoje que a Casa Branca vai ter blog... A exposição e a intimidade se confrontam a todo instante em nossas vidas, meu perfil está pregado no poste, como resultado do jogo do bicho.
A Dina foi uma cachorra especial. Quem a conheceu sabe disso. Boêmia, adorava uma cerveja e cantar! Era namoradeira, e foi mãe generosa e devotada. Teve mais de 20 belos filhotes espalhados pela cidade. Grande protetora, foi uma verdadeira anja (anjo tem sexo, sim) da guarda numa época em que eu desconhecia a morte e, por isso, não ligava pra gastar as vidas que tinha. O fato de ela cantar facilitava bastante sua vida boêmia: era muito fácil arrumar uma carninha, um osso ou um ovo cozido, sua comida favorita. Ela o descascava com os dentes, prendendo-o com a pata. Depois o comia em duas mordidas. Antes, era só cantar um pouco. Qualquer balconista ou dono de bar ficava embasbacado e liberava a comida. Eu apontava o ovo, dizendo que ela o descascava, provocando uma dúvida reticente, já que era uma cachorra que cantava...
Ela era uma pointer, perdigueira, caçadora de perdizes, não podia ver um galinheiro que era encrenca na certa. Os pombos também a encantavam, mas não tanto. Tinha pedigree, apesar de eu nunca tê-la registrado, pois era caro. Seu nome oficial, nos documentos, era Afrodith of Tranquility (seu pai, Arthur of Tranquility, havia sido campeão e foi seu primeiro namorado, num rumoroso caso de incesto, quando ela ainda tinha oito meses). Mas sua alma era de vira-lata e deixou a nobreza de lado para conhecer o mundo real. Não dava pra chamá-la de Afrodite, apesar do seu pendor para as paixões e o amor (ela teve um amor duradouro, o Flight, em cuja companhia ficava radiante sempre), então lhe dei o nome de Dina, homenagem à mãe, não sei se verdadeira ou adotiva, do Gonzaguinha, citada em algumas de suas músicas.
Dina era nome de vira-lata e foi pensando nela e em mim que escrevi

Alma de vira-lata

Perambulo por aí,
bato pernas a esmo, passeio,
as ruas são minhas,
os cantos, as tocas,
recantos e encantos
da cidade são meus.
Nenhum muro me cerca,
nenhum olhar me vigia
nenhum senhor me dirige,

Minha alma livre
me anima e me leva:
sou dono do tempo
e o vento sou eu.
Alma de vira-lata,
ama o instante,
navega nas nuvens,
segue seu rumo torto,
voa,
a pressa, carrega no bolso,
a paz, no coração...

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Segunda-feira, e estou de volta de Maracangalha... Foram alguns dias sem pensar em trabalho, contas, compromissos, só esperando a chuva passar pra poder ir até a praia e pescar. Demorou um pouco: a Zona de convergência do Atlântico, substituta das massas polares e das frentes frias, velhas conhecidas, é a mais nova estrela das previsões meteorológicas. E só deu ela nesse verão molhado e frio, meio com cara de agosto, mês das previsões sombrias...
Mas na sexta-feira de manhã, finalmente, o sol saiu tímido, trazendo esperança de praia e peixe. Lá fui eu e, aqui, vou relatar minhas façanhas de pescador - amador, claro, nem deveria me preocupar em esclarecer, mas é bom, em respeito àqueles que saem de madrugada diariamente pra essa lida tão árdua quanto romantizada. Antes de começar, quero alertar que estórias de pescador amador são mutantes, crescentes, amadurecem, florescem e frutificam com o tempo, e devem ser ouvidas com o coração aberto. É que pescar nos remete à nossa ancestralidade mais remota, quando caçávamos e pescávamos para comer. Mais do que comer, para matar a fome. Não tinha dispensa, armário na cozinha guardando alimentos pro dia seguinte... Era correr atrás da comida de daqui a pouco. Como nas casas das pessoas muito pobres: não tem comida guardada, não tem dinheiro no banco, poupança, nem cofrinho com moedinhas pra tirar do sufoco. O que se ganha, se consome no dia, na hora. Amanhã é outro dia, outra luta, outra caçada...
Enfim, creio que esse passado está impresso em nosso inconsciente e justifica esse fascinante percurso que as vivências dos pescadores percorrem desde o fato até a versão. E eu, na sexta-feira, após alguns camarões perdidos no mar agitado, resolvi tentar jogar os anzóis entre umas pedras, num lugar em que havia o risco de perder isca, anzol, chumbo, todo o material... Bem, no primeiro arremesso, logo de cara, consegui acertar bem no poço que mirara e, em instantes, dois marimbás bem crescidinhos aportavam na areia. Aqui cabe um parênteses: quem nunca trouxe um peixe pra areia, puxando a linha e sentindo sua resistência depois da mordida inicial, da beliscada que, dizem os mais experientes, varia de forma muito clara entre as diversas espécies, não sentiu uma emoção parente do grito primal. E o fato, inquestionável, mesmo que vocês pensem que se trata da minha versão, foi que veio um marimbá atrás do outro, o que me fez resistir bravamente à chuva que ia e vinha, disputando a praia com um sol tímido, que chegava com preguiça e não firmava. Depois de limpar os peixes, feliz e orgulhoso, voltei para a casa em que estávamos , com uma sensação maravilhosa de dever (bem) cumprido, mas também com as coxas todas queimadas por um mormaço invisível. A pele ficou grená, como a cor do Fluminense. Foi um tal de passar creme hidratante toda hora, já que ardia igual queimadura de fogo, que tive que ficar de pijama até domingo em casa, sem querer nem poder saber do sol que, então, saiu abusado da toca.
Bem, agora que voltei de Maracangalha, é encarar as contas, responsabilidades, cair de cara na realidade e sair contando, me perguntem ou não, que pesquei tantos marimbás que até perdi a conta... É verdade, já nem sei mais quantos foram. Isso sem falar no tamanho deles: tinha uns, que eu nunca tinha visto tão grandes! Verdade mesmo! Pena que não tinha máquina pra fotografar e meu celular é só telefone... Da próxima vez, não esqueço, tenho que levar uma máquina, se não as pessoas ficam achando que estou mentindo. E eles eram muitos! E muito grandes! Eu juro!

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009


Eu vou pra Maracangalha, eu vou...
Quando era criança, lá pelos meus 8, 9 anos, passávamos férias no sítio de minha avó. Vó Dolores era também minha madrinha e isso me dava uma certa sensação de superioridade com relação aos primos. Não havia diferença no tratamento, mas tinha o título de afilhado. Só isso bastava.
Recentemente, passei pelo sítio, vendido por ela há mais de 40 anos, que fica às margens da Dutra e parei para dar uma olhada. Era o sítio da vovó, apesar de que parecia menor. Os caminhos por onde andávamos, a distância entre as árvores, o terreiro onde jogávamos aguerridas peladas... Tudo era infinitamente menor do que nas minhas lembranças. Tirei umas fotos e segui viagem, lembrando da primeira bicicleta e dos primeiros tombos de cima dela. O primeiro e único passarinho que matei, para ser igual aos primos e meninos da vizinhança, e da vergonha que senti imediatamente. A sensação de ser um covarde, ao ver aquele serzinho inerte na minha mão, as penas sujas de sangue, a impossibilidade de novos vôos, novos cantos. Lembrei com enorme saudade do Bastião, negro de pernas deformadas que era caseiro do sítio e tocava à noite uns calangos no cavaquinho, afastando a sua solidão e a minha, que temia fantasmas, monstros e ladrões. Havia algumas noites em que uma buzina diferente, potente e com várias notas iluminava a noite com o seu som. Era um caminhão que às vezes víamos no posto de gasolina estacionado pela manhã, quando seu motorista resolvera pernoitar por ali. Algumas noites, ele passava sem parar e buzinava, saudando o pessoal do posto. Nos arredores, na beira da estrada, em baixo de uns eucaliptos, de vez em quando acampavam ciganos e, aí, os mais velhos nos proibiam de perambular por ali sozinhos: eles roubavam crianças, nos diziam.
Quando saíamos do Rio para o sítio, cantávamos, alegres, antecipando os momentos que certamente viriam: eu vou pra Maracangalha, eu vou... Maracangalha era o nome do sítio. Ficou para trás no tempo e continua presente no coração, apesar de que o sítio que parei para ver e que fotografei recentemente (a foto aí de cima), não é mais o mesmo. Tem a casa igual, a mesma varanda, o mesmo desenho do telhado, visto do alto. Árvores desapareceram, umas novas surgiram, mas a verdade é que não estamos mais lá. Não há mais os eucaliptos da beira da estrada, a mata, ao fundo, minha vó, os primos, a algazarra das crianças... Apesar disso, a visão dele me enche de uma alegria saudosa, diferente daquela que nos faz gargalhar. E uma alegria contida por saber que é história. Passou e ficou somente dentro de cada um que a viveu.
Vou viajar daqui a pouco e a sensação é a mesma: uns dias de férias, a despreocupação de um tempo sem as obrigações da vida de adulto, eu vou pra Maracangalha, eu vou...






sábado, 17 de janeiro de 2009

Há um tempo, atendi no consultório um conhecido escritor. Sofria de uma crônica angústia. Quando chegava um certo dia da semana, ele começava a sentir medo de não conseguir escrever sua crônica semanal a tempo de enviá-la aos jornais. Ele nunca deixou de fazê-lo, mas sempre sofria achando que não ia conseguir. Agora, desde que inventei essa história de blog, comecei a me cobrar escrever alguma coisa. E aí, me lembrei dele e sua crônica angústia com relação à crônica... Só que eu não tenho obrigação com o tempo (crônica, substantivo ou adjetivo, penso hoje pela primeira vez, tem a ver com cronos). Mas percebi que, ao criar o blog, pensei num espaço pra escrever minhas incertezas. Não pensei no tempo. E agora, estou pensando: tenho que ter alguma regularidade para postar um material? Que compromisso tenho com quem vai ler? Quem vai ler? Devo fidelidade aos leitores? Responsabilidades, cobranças, culpas, ninguém estuda em colégio de padre e sai incólume...
Está resolvido que só vou postar alguma coisa quando achar que presta e que tem a ver com o compromisso que tenho comigo, com a minha vida. Quero a beleza, o aprimoramento, a solidariedade, coisas assim. E no mais, vou escrevendo quando me der na telha (telha como cabeça é muito bom!). Ou no coração.
Hoje, de manhã fui pescar. Nada. Só o Nino que pescou um carapicu. (O corretor ortográfico sinaliza em vermelho carapicu. Fui ver sua sugestão de correção: cárpico!!! Que ignorância. É claro que ele não conhece o Tupi, mas mandar uma proparoxítona dessas....). Fui pro Google (estou sem dicionário em casa e no computador...) e descobri: akará pukú è cará = peixe de escamas e picu (pucu) = comprido. Então, foi isso que o Nino pescou: um peixe de escamas comprido...
Não sei como, de peixe fui pra perereca e daí, resolvi deixar por aqui uma poesia que fiz pra uma delas, verdinha, que encontrei dia desses perdida numa chuvarada...



A PERERECA ATÔNITA

Descida na enxurrada,
sem querer nada
ou quase nada,
encontro na calçada
uma perereca atônita.

De um ímpar verde, quase par
com as folhas mais juvenis,
lhe assustam os passos,
o cimento, os carros.
E se pergunta:
“onde eu vim parar?”,
enquanto quem passa,
se espanta ou se encanta
com sua cor, sua forma típica,
seu aspecto singular.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

A formiga e a flor

Talvez só tenha aprendido a guardar segredos...
Mágoas também - mesmo sem querer -
tenho que reconhecer, apesar da vergonha,
ficam escondidas em algum canto de mim
e afloram, estúpidas, a me reviver
o que nunca desejei sentir.
Mas os cheiros, sabores,
as belezas todas que colhi e colho,
nunca as guardei só pra mim.
É como se no meu peito não coubessem
e escapassem, me obrigando a dividi-las.
E esse compartilhar me fez ter muitas coisas
sem ter nada guardado.
Por isso, talvez, tenho tudo
e tenho nada,
sou livre na minha pobreza
e feliz e em paz com minha riqueza.

Isso tudo eu falei
pra justificar o que vou contar:
eu vi uma formiga carregando uma flor!
É! Eu vi uma minúscula formiga
carregando uma mais minúscula ainda flor!
E me encantei com o insólito e surpreendente
da rara cena, mesmo sem ilusões
de que a formiga estivesse levando a flor
para a sua amada.
Nada disso!
Pelo jeito como era carregada,
não seria certamente um banquete
ou sequer um petisco especial.
Não! É mais provável mesmo
que fosse refeição trivial.
Mas quando eu vi
uma formiga carregando uma flor,
uma pequenina formiga carregando uma singela flor,
eu pude ver que a beleza está no olhar
quando este consegue ver
a vida seguindo, inevitável.
E me enchi de esperança ao descobrir,
além da alimentar cadeia
que nos aprisiona, liberta ou consome,
a beleza que se esconde mesmo na morte,
que pode ser, no fim das contas,
a refeição mais banal.