quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Pais ausentes

Impressionante como se pode escrever torto por linhas retas... Ao contrário de Deus, mas também em seu nome, desamores e horrores são perpetrados. E perpetuam-se ausências e vazios, frutos de desencontros programados, restando a pergunta, cena final de épico da Metro dos anos sessenta: “Pai, porque me abandonaste?”



Verdade ou mais uma licença não poética, mas patética e profética desta vida de cartas marcadas num jogo sem fim - sem ganhadores, sem perdedores nem final feliz: nas ausências dos pais realizam-se os Édipos, mães e filhos sonhando-se e ficando juntos, mais do que ficando, infinitando o proibido encontro: ela, plena e prenha de vida como dantes, ele, pré-infante como quando amarrado/amado por cordão, esperando que ela o dê à luz... na escuridão absoluta, cegueira edípica total, tateia, esperando que ela lhe dê luz.


O que será de nossas crianças meninos? As mulheres buscam homens-provedores-protetores para que cresçam e apareçam, como se desaparecessem da sua história original de órfãs de pai. Até que, tardia, mas finalmente providas e protegidas pelo que alcançaram à sombra desses papais de mentirinha, se vestem as roupas de super e renegam o papel anteriormente escrito. Agora, podem espiar todo o ressentimento de tempos infinitamente vividos de abandono e solidão... Ou então se resignam e se cronificam filhas postiço-bastardas daqueles amores não tidos.


E seus filhos, elas os criarão, à imagem e semelhança daqueles que as abandonaram. E eles seguirão, assim, reproduzindo eternamente a história percorrida até então. Por todo o sempre: filhos sem pais, moldados por mães mártires, mortes à vista...


Onde estão os pais? perguntam-se as mães... Estão onde sempre estiveram: no colo delas, realizando em seus regaços a perda dos partos, o vazio dos nascimentos, o fim daquela plenitude pulsante e ao fim tão dolorosa. Estão os pais perdidos sob essas saias adoradas, desejadas no seu avesso, na nudez da sua ausência.


E os filhos, como ficarão? Como crescerão? Pra onde irão? A lugar nenhum, posso garantir. A não ser que re-cortem esse elástico cordão mais que cicatrizável, eternamente regenerável, ninho de células-tronco matrizes de corações despedaçados.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

CÓLICAS MENSTRUAIS


Para nós, homens, cólicas menstruais são uma enorme escuridão. Como tudo que diz respeito às nossas desejadas e insondáveis divas – por mais que tentemos penetrar em suas entranhas e mesmo tendo delas vindo à luz –, o assunto é mais um mistério desses poderosos seres que, apesar de sangrarem todos os meses, não morrem disso e ainda nos desafiam com sua diferença em nosso cotidiano.

Freud falou de uma suposta inveja do pênis, o que foi contestado genialmente por uma delas, referindo uma inveja não do pênis e sim do sistema hidráulico. Mas ele não apontou em momento algum a ambiguidade dos sentimentos, que vão da inocente-infantil- quase-platônica admiração ao ardente desejo de homem diante desses seres que, além de serem fartos mananciais potenciais de prazer, trazem dentro de si verdadeiros ninhos onde nutrem, literalmente com seu sangue, os filhotes. E continuam fazendo-o, já depois deles nascidos, com seus peitos, independente do tamanho que tenham!

Então, a partir de uma dúvida postada no sítio Mulheres de opinião, desejei expor algumas reflexões minhas sobre o assunto, após obter resposta positiva à minha pergunta “vocês aceitam palpite de hômi?”.

Em primeiro lugar, há cólicas de dois tipos: a secundária, menos comum, que é devida a doenças do útero, do sistema reprodutor, ou glandular, entre outros e a primária, mais comum, que ocorre principalmente na mulher jovem e que não teve filhos, e geralmente melhora com pílulas anticoncepcionais. Isto porque a pílula inibe a ovulação e todo mês as mulheres em idade fértil preparam uma “pelezinha” na parte interna do seu útero, o seu endométrio, que é como um ninho onde o futuro embrião, no caso de uma gravidez, vai ficar por cerca de 40 semanas. É lá, nesse ninho, que o embrião vai virar um serzinho de meio metro de comprimento e uns 3 quilos de peso! E ele chega a esse tamanho todo se nutrindo através dessa “pelezinha”, do endométrio, que é por onde ele se liga ao corpo da mãe e por onde passa o sangue dela para ele ao longo de todo este período.

A cólica menstrual é a contração do útero, um músculo fortíssimo, tentando expulsar o endométrio que não foi utilizado naquele ciclo, já que o óvulo liberado no período não foi fecundado. Então, ele descama pra que o útero comece a se preparar para uma gravidez no ciclo seguinte!

É que as mulheres – assim como nossa mãe Terra - durante a sua vida fértil, praticamente todo mês se preparam para uma gravidez. Com a descamação, a parede do útero sangra e esses tecidos se acumulam no colo do útero, que é um canal mais apertado por onde sai o fluxo menstrual. A cólica é a contração do útero para expulsar esses tecidos. Tudo para que comece a seguir o processo de renovação para uma outra possível gravidez.

A menstruação é, portanto, a manifestação física de que não ocorreu uma gravidez. Muitas vezes na vida ela é um momento de alegria por significar que uma possível gravidez indesejada não aconteceu. Assim como pode ser um momento de enorme tristeza por significar que uma gestação ansiada não se realizou. Mas o importante com relação à menstruação é que ela é a manifestação de que a gravidez não aconteceu e aquele óvulo não cumpriu o seu destino de encontrar um espermatozóide e se fazer vida. É quase como a frustração do óvulo...

Ainda com relação às cólicas, tem umas em que a dor é por bloqueio do sangue; nesses casos, vale a pena fazer exercício, movimento, usar alimentos que aquecem o organismo (como o chá de canela que também esquenta), pra ajudar a sair o sangue com os restos de endométrio. Já outras são nevrálgicas, por acometimento dos nervos locais. Aí, só o calor local pode ajudar. E, um outro fator que pode influenciar é a posição. Isto porque, dependendo da disposição do útero (se com o colo, que é a sua saída, voltado pra frente, pra trás, mais pra baixo ou virado meio pra cima...), pode ser mais fácil a eliminação desse conteúdo quando deitada de bruços, de lado, de barriga pra cima, etc... Afinal, cada caso é um caso!
Com relação a medicamentos que podem aliviar, há mulheres que melhoram com o velho elixir paregórico (40 gotas até 3 x dia) ou o também idoso Atroveran, na mesma dosagem;   o óleo de Prímula pode ser benéfico, na dose de 1,5 grama 2 x dia; além do chazinho de canela, já citado acima, vale experimentar o de camomila. Se nada disso melhorar, o analgésico favorito de 9 entre 10 mulheres com cólicas é o ácido mefenâmico, cujo nome comercial é Ponstan, na dose de 500 mg de 8/8 horas.
No mais, posso dizer que, tanto a menstruação, como as cólicas menstruais desses seres desconhecidos que habitam o nosso planeta, nossos corações e nossos pensamentos são mais umas de suas esquisitices.
Palavra de homem!

sábado, 11 de setembro de 2010

XX + XY = tudibom

Confesso que me senti lisonjeado com o convite. Afinal, escrever num sítio de mulheres... Além do mais, “mulheres de opinião”... Sempre gostei de estar perto delas, me é estimulante! Então, escrever num espaço delas... Mas também me deu um certo medo, me senti meio esquisito: como escrever um texto “polêmico”, como me pediu a Eliane, numa página de mulheres? Já estou meio maduro pra cutucar onças com vara curta. Já me meti em encrencas fenomenais por causa disso e saí sempre arranhado. E pra arranhão dessas onças, não tem o equivalente masculino da lei Maria da Penha... E elas arranham mesmo!
Com relação à dita lei, mesmo tendo ajudado muitas mulheres a afastarem de perto de si uns otários violentos, a verdade é que ela discrimina e incrimina o homem (“Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher”, conforme sua introdução), colocando-o como potencial agressor, enquanto deveria coibir a violência em geral, seja ela de que ordem for e contra quem for. A verdade é que proteger o homem não dá ibope. Tenho certeza de que, se um deputado propusesse a criação de uma lei João da Silva, poderia até ser reeleito, mas ia apanhar muito! A mulherada ia fazer campanha pra derrubar o maldito. Por isso, vou escrever com todo o cuidado do mundo, com suavidade, calma, doçura e profundidade. Como as mulheres gostam. E com duplo sentido, mesmo.
Bem, de cara, vou logo dizendo que estou um pouco traumatizado porque tomei um “ou dá ou desce” de uma amiga, que quer que eu a chame namorada. Fiquei assustado e resolvi descer. Literalmente, desci do seu carro pensando: porque toda (não generaliza, Henrique), aliás, quase toda mulher quer  a afirmação de um compromisso? Cheguei em casa pensativo, chateado por causa da real possibilidade de não mais voltar a vê-la, já que ela estava zangada mesmo! Meu caçula de apenas 14 anos, me vendo sorumbático, perguntou: “Que houve, pai?” Respondi-lhe, contando o que havia acontecido há minutos. Ele, gozador, deu uma risadinha safada e me saiu com essa: “Rárrárrá, o velho tomou um ‘DR’, rárrárrá”. Não entendi o gracejo, nem a sigla que para mim sempre significou doutor, e perguntei: “Que que é ‘DR’”? Ele sacou imediatamente o verbo e mandou: “Discutir a relação, pô! Tem que fugir dessas, quando elas vêm com esse papo, desconversa, faz um elogio, um convite, só não pode falar em sexo e tesão, senão ela vai dizer que você só pensa nisso”.
Fiquei estupefato! Não tem palavra melhor pra expressar o que senti/pensei naquele momento. Perguntei: “como você aprendeu isso?”, e ele, “porra, pai, em que planeta você vive? Todo mundo sabe disso!” Parecia que ele estava me dizendo que a gente já nasce sabendo essas coisas... Ou deveria nascer! Como que um moleque de 14 anos sabe essas coisas? Afinal, é verdade ou será um mito essa coisa de “DR”, discutir a relação? Será que somos assim mesmo tão diferentes: nós homens, só querendo saber de sexo, futebol e sexo, e elas, preocupadas com as questões mais viscerais e existenciais?
Voltando ao papo sobre a lei João da Silva, sei que posso me machucar - acho até que não vou dar meu nome completo e nem deixar o email porque periga eu tomar um processo ou ser acusado de machista - mas acho que qualquer agressão deve ser punida, indiferente do sexo a que pertença o(a) agressor(a). Afinal, tem mulher que agride o seu homem... E, apesar de que algumas argumentem que a agressão feminina é menos violenta, menos danosa, é agressão. Mesmo um arranhão, à luz da lei deveria ser condenável. Isso, sem contar na agressão auditiva, que são os gritos, os faniquitos, coisas desse tipo que os homens sofrem, mas que são inimputáveis.
E só pra ilustrar e provocar alguma reflexão – afinal, elas gostam disso...- faço aqui um relato interessante: hoje, fazendo umas comprinhas no supermercado (é, tem homem que é dono de casa, vai ao mercado, lava louças e até cozinha...), ouvi duas mulheres conversando sobre os filhos: “Quero ver alguém se meter na educação de filho meu! Com um menino daqueles atentando dentro de casa, não dá pra conversar! Ele só obedece quando apanha, se você vai na conversa, ele tripudia de você. É turrão, encrenqueiro, só o chinelo é que ele ouve. Palmada, parece que ele nem sente, parece que criou uma casca! Tem que pegar o chinelo. Aí, ele arregala aquele olho e para pra pensar. É o único jeito. Lei da palmada lá em casa não vai valer, não! ” A amiga ouvia atentamente aquela mãe que, nervosa, exagerava no sotaque nordestino, e então, soltou a isca, provocativa: “Dizem que eles vão poder até entrar na casa da gente! É só alguém denunciar!”  A outra, já prevendo a dificuldade em segurar o moleque sem usar os chinelos, disse, voz nervosa, esganiçada: “eu boto ele no colo do juiz e digo pra ele cuidar. Quero ver!”   O fato é que a lei Maria da Penha já pegou. Mas agora, temos que ver se a Lei Juquinha, a da palmada, também pega! Afinal, ela é bissexual... 
Para quem não sabe - segundo dados do PNAD, Programa Nacional por Amostra de Domicílios de 2009 - uma criança ao nascer no Brasil hoje tem uma expectativa de vida sete anos menor se for do sexo masculino! É isso mesmo, sete anos! As mulheres hoje vivem mais sete anos que os homens em nosso país! Espantoso, não? E como a expectativa de vida é um dos dados mais importantes na avaliação de uma população, fica aqui a pergunta: qual será, na verdade, o sexo frágil? Não deveria o homem ser mais protegido?             
Uma queixa muito frequente que ouvimos por parte das mulheres é sobre o pouco envolvimento dos homens com a casa e com os filhos... Pode ser verdade, apesar de depender muito da classe social. Eu me lembro que, no ano passado, me solicitaram que desse uma palestra para os responsáveis por algumas crianças que haviam tido aula comigo sobre sexualidade, lá na Rocinha. Os pais tinham dúvidas sobre algumas perguntas feitas pelos filhos após as aulas. Quando cheguei, nenhuma novidade: 11 mães e 2 pais. Lá pelas tantas, homens calados, meio envergonhados, não se sentindo à vontade naquele espaço predominantemente feminino, as mulheres começam as queixas: “os homens não ligam pra educar os filhos, só querem saber da rua, do futebol, não estão nem aí... Aí, o filho dá problema, estoura no colo da mãe...” Enquanto os dois pais ali presentes quase se afundavam nas cadeiras, elas reclamavam e acusavam os homens, generalizando. Até que eu, meio que aborrecido com aquela chatice das queixas repetitivas, perguntei: “mas afinal, quem criou esses homens desse jeito? Se os pais são tão ausentes, quem os criou assim foram suas mães, não é?”  O silêncio que caiu no ambiente foi ensurdecedor! Os homens suspiraram, as mulheres afundaram suas reclamações em seus pensamentos... Então falei: “a gente só vai resolver essas dificuldades quando assumir que estamos no mesmo barco!” E terminei a palestra, aliviado.
Li recentemente que o Kissinger, ex-todo-poderoso do governo Nixon nos Estados Unidos da década de 60/70, disse algo que talvez tenha sido sua frase mais brilhante: “a guerra entre os sexos não vai nunca ter um vencedor. É que há muita confraternização entre os adversários”.
Fica, então, um convite a estes maravilhosos e misteriosos seres criados pela natureza: “vamos levantar a bandeira branca e confraternizar!”.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

CAROÇO MORREU


Morreu o Caroço e acho que fiquei de luto, daí ter parado de escrever e postar minhas palavras no blog... Senti a sua partida menos do que sentia sua solidão. E chorei, comovido, na missa de sétimo dia quando o padre falou seu nome: Hilbem Alves dos Santos. Caroço gritava o seu nome alto, com sua voz de alto-falante-camelô. Gritava, orgulhoso, e secundava-o com o nome do pai, “filho de Francisco Alves dos Santos”, como que dizendo a quem o ouvia: não fui filho largado, não, tive pai. Mesmo sendo bastardo – sua mãe, índia, essa sim foi abandonada por Francisco, que era casado e tinha outra família -, seu pai o colocou pra estudar num colégio de padres. Às vezes, eu implicava com ele dizendo que fora educado por pedófilos... Ele ria e dizia que não. Tinha, sim, beijado muitas vezes aquelas “mãozinhas branquinhas e lisinhas de quem nunca pegou no pesado”, mas saiu de lá virgem. “Frente e verso”, dizia, rindo abertamente. Depois de cinco anos de estudo, pôs a perna no mundo e veio dar aqui no Rio de Janeiro, “a cidade mais bonita” de todas que ele conheceu e que foram “milhares”.
Morreu num domingo, depois de ter bebido no sábado uma garrafa inteira de 51, misturada com guaraná Tobi, sua preferência. Dizem os que estavam por perto que já caiu durinho, língua arroxeada e umas pregas ao redor da boca que insinuavam seu sorriso sardônico de sempre. Era uma figura querida de muita gente. Mas era um farrapo, por outro lado. Tinha uma filha em Roraima, de 27, 28 anos, dentista criada por outros, mas a quem ninguém conseguiu avisar por total desconhecimento de dados. Nem o nome se conhecia. Quando ele falava dela, revelava um orgulho que me soava estranho: uma filha que ele viu duas, três vezes, deixou com a mãe para ser criada por outros, de quem não tinha sequer uma foto, a quem jamais vira depois de formada... Esse orgulho talvez fosse da consciência que a criação nos dá de que a vida continua. Sempre. E, mais ainda nos filhos.
Dias depois, aquele pedaço de calçada que era sua casa, seu palco, estava incrivelmente vazio. Era lá que ele armava sua mesinha pra vender toda a sorte de bugigangas: elásticos pra cabelo, coadores de café, jarros de vidro de gosto duvidoso, latas de biscoito velhas, chaveiros, antenas de TV, celulares velhos e carregadores diversos. Dias antes, eu o vi bem vestido e o cutuquei, perguntando: “Foi fazer exame de fezes?” Ele respondeu: “Estou abrindo uma filial no Catete e fui até lá pra resolver um probleminha no ponto...” Ele andava zangado desde que a Guarda Municipal levara suas coisas. Dizia: “São uns muquiranas! Não aqueles muquiranas que dão na cadeia, não!”, referindo-se a um tipo de piolho comum nas cadeias. “Muquirana que estou falando é de gente que não presta, que não dá pra confiar! Eu sou deficiente físico – referia-se à cegueira de um dos olhos -, eu posso vender na rua! Quando sair minha autorização eu vou fazer eles engolirem! São uns covardes.”
Quando ele bebia demais e ficava chato, perturbando os outros, eu o ameaçava: "vou te tirar da internet", em alusão ao texto que eu postara com sua foto há um ano. Ele, mesmo sem nunca tê-lo visto, sem sequer ter entrado uma única vez na internet, me olhava acusando o golpe e retrucava: "aí, não vale, né!" E dava uma aquietada. Em sua homenagem, portanto, perpetuo sua imagem nas nuvens... 
Morreu o Caroço! Faz falta a sua voz. Mas faz mais falta ainda o seu sorriso que, com a ausência de dentes que o sustentassem na boca, transparecia nos olhos. Até naquele olho direito vazado, embaçado, azulado pela cegueira... Era um sorriso da alma. Não é à toa que ele chamava os especialistas que o trataram na época do acidente que o cegou de almafotologistas...

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Cidade Maravilhosa

Num momento dramático como este que o estado do Rio de Janeiro atravessa, uma pergunta deve ser feita para que as autoridades respondam: onde estão policiais militares, bombeiros, guardas municipais? A gente certamente encontrará alguns trabalhando na busca de sobreviventes ou corpos de vítimas, outros poderão estar organizando o trânsito ainda caótico, muitos podem estar trabalhando no policiamento ostensivo... Mas, infelizmente, muitos outros, apesar das demandas urgentes da sociedade, estão fazendo seus “bicos”. Conforme noticiado ontem, alguns, talvez cinco deles, faziam a segurança do bicheiro cujo filho morreu num atentado, ao voltar da academia de ginástica. Não deveriam estar todos de prontidão? Trabalhando pelo Estado e pela população que paga seus salários? Ou terão sido eles liberados por seus superiores? Ou será que seus superiores também estão envolvidos com os bicos?
Neste momento em que se discutem verbas perdidas pelo Estado – essas que foram para o estado da Bahia, levadas pelo ex-ministro Geddel Vieira Lima, agora candidato a governador, e apelidado de percevejo de gabinete pelo presidente Itamar Franco, segundo Ancelmo Góes, os recursos dos royalties do petróleo, magnanimamente distribuídas país afora pelo anão Ibsen – é importante que se atente para a herança deixada à cidade-estado pela ex-capital da república. Além de uma população enorme, algumas estruturas superpostas incham seu corpo e atrapalham seu funcionamento. Como exemplo, temos a estrutura de saúde, onde se misturam órgãos federais, estaduais e municipais, gerando enormes buracos negros, terras de ninguém, como aquele que virou motivo de chacota por ocasião da primeira epidemia de dengue no estado: discutia-se, na época, se o mosquito era federal estadual ou municipal, já que um órgão empurrava a responsabilidade para outro enquanto os mosquitos se multiplicavam. Outra herança pesada é por que e para que temos um enorme contingente de militares, talvez o maior do país, se aqui eles estudam, treinam, ensaiam, mas pouco fazem pela cidade. Viramos rota do tráfico internacional de drogas, temos extensas áreas dominadas pelo crime organizado e uma quantidade enorme de militares se exercitando para “defender a Pátria”, enquanto tudo isso acontece perigosamente ao seu lado.
Será que não chegou a hora do Rio de Janeiro mostrar a sua cara? Realmente mostrar que não que ser reconhecido somente por sua beleza? O que podemos fazer para interferir em nosso destino? Quantas catástrofes, quantas chacinas, quantos dramas nossa população ainda vai ter que viver mais para merecer o respeito que merece? Ou será que o Rio de Janeiro está fadado a ser visto como uma moça bela, porém fútil e por isso desprezada? O que falta para sermos realmente protagonistas de nosso destino? Não sei qual e nem se existe uma fórmula exata mas, certamente, não será com governantes engolindo sapos barbudos só para mostrar uma duvidosa parceria com o governo federal...

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Pandemia, pandemômio, tragédia.

Anunciada ou não, foi e está sendo uma tragédia. Muita gente morta, maior ainda o número de desabrigados e a sensação desalentadora de que as coisas estão fora do controle. Tirando a orientação do prefeito, “fiquem em casa” (pois o espaço público não é seguro, faltou dizer a novidade), o que se viu foi uma amostra do caos. Aliás, com perdão dos trocadilhos numa hora dessas, quem tinha uma casa segura, tinha um cais. E o mesmo prefeito (que deu a orientação perfeita) criticou - mas renovou - o contrato com a fundação Cacique Cobra Coral, que teria o poder de controlar as chuvas na cidade. Só que não acolheu as recomendações da instituição e demorou a pedir ajuda: “não adianta sermos convocados com o caos já instalado”, explica Osmar Santos, relações públicas da fundação. Resultado? Não deu pra fundação ajudar e tivemos essa calamidade cheia de dores e dramas e mortes. Mas me pergunto, porque uma instituição espírita precisaria do chamado do prefeito para ajudar? Será que não bastam as preces de milhares de cidadãos crentes que diariamente fazem suas orações pedindo aos céus que tragam paz e proteção para o mundo? Tem que ter o pedido de um alcaide? O cacique só atende autoridade? Será uma síndrome de chefe até nas esferas espirituais?
O governador, que na tragédia do início do ano só apareceu doze horas depois - e, mesmo assim, com a cara bem inchada – dessa vez não demorou a se pronunciar. E, pra variar um pouco a melodia, culpou os pobres, que moram em área de risco. E disse que o Estado tem que ser duro e tirar toda a população que mora nessas áreas. E eu me pergunto, o vizinho do Eike Batista, no Humaitá, que construiu sua mansão na beira do morro e foi responsável por um rio de lama que inundou o bairro no dia da chuva? Vai ser removido? Ou ele financiou a campanha de algum político e vão descobrir que sua casa fica abaixo da cota não sei qual e, então, construir ali, “pode”, como diria a cínica personagem do programa humorístico... O mesmo governador só faltou esfregar as mãos ao falar da ajuda que o governo federal dará ao Estado para ajudar na reconstrução. E autoridades municipais da área de obras e infra-estrutura, afinadas, referem já terem acordadas diversas ações de limpeza de bueiros, contenção de encostas e reconstrução de vias urbanas, inclusive com empreiteiras acertadas, sem licitação, pois o regime de urgência assim o permite.
O mesmo regime de urgência permitiu ao governo federal comprar milhões de doses de Tamiflu, o antiviral com ação contra o vírus H1N1, da gripe suína, e de doses da controversa vacina que agora está sendo oferecida à população. E então, recebo todo dia uma série de mensagens me perguntando: “devo tomar a vacina ou não?” Porque será que as pessoas ainda não se decidiram? A resposta é uma só: falta credibilidade às autoridades. Ninguém acredita na maior parte dos políticos e, mesmo os técnicos do governo, como deveria ser o caso do ministro da saúde, têm suas recomendações questionadas. É que os interesses subterrâneos são tantos, os caixas dois, três e outros são tão escancarados, que todo mundo desconfia. E isso acontece aqui e também na Europa. Afinal, porque os europeus, maciçamente, rejeitaram a vacina se ela foi disponibilizada para a população pelas autoridades sanitárias da União Européia? Serão eles desinformados? Será porque há muitos analfabetos por lá, ou terão eles “saúde de vaca premiada”, como diria o grande tricolor Nelson Rodrigues, e não precisam se vacinar? Se a Organização Mundial de Saúde recomendou, porque a população rejeita?
Vivemos uma crise moral, ética e as pessoas não são tolas: em termos de planeta, terremotos, tsunamis, secas e enchentes nos assolam e assustam cotidianamente. A tão antiga fome – não falo do sentir, que todos sentimos, falo do passar, que só quem viveu pode saber a sua dimensão de desumanidade – persevera, como se não fosse simples resolvê-la. O consumo crescente ameaça, mas os que têm demais, sequer cogitam abrir mão... E o que fazer? Não sei... Queria saber e poder dizer, mas, além de tudo, voltou a chover e isto me desanima tanto que não fico a fim de falar ou escrever mais nada...

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Falando de insetos...

A inauguração deste blog foi o extravasamento da emoção que vivi ao ver uma formiga carregando uma flor. Ainda estão lá na primeira postagem as palavras desse momento. Mas ontem, cuidando do meu pequeno jardim, me vi às voltas com umas formiguinhas terríveis que volta e meia se arvoram a comer minhas plantas. A vítima da vez foi o pé de hortelã. Logo ele que tem fama de espantar vermes e outros monstros do nosso microscópico submundo... Há umas semanas foi um pé de manjericão que, de tão frondoso, já rendera inúmeras mudas para visitantes que o admiraram. Tive que podá-lo em tal extensão que ficou pelado. Nem uma folhinha ficou pra contar a história e, do tronco e galhos que restaram, até agora não brotou nenhum verdinho.
Lembrei do Policarpo Quaresma – criação do genial Lima Barreto - mais um de meus heróis assaltado pela loucura. Policarpo também sofreu nas garras das saúvas e teve inúmeras plantas suas devoradas por elas. Não posso botar veneno nas minhas porque senão, não dá pra comer depois. Então, é sabão diluído, pimenta com fumo de rolo e outras receitas, muitas vezes fedorentas, pra tentar espantá-las. Aliás, matá-las! Exterminá-las seria melhor... e definitivamente, sem deixar uma sequer solitária andando a esmo por aí.
Essa noite, acordei às 3 ou 4 da manhã, com mosquitos me picando. Só que agora, estou armado: comprei uma raquete dessas chinesas que vendem nos sinais pra matar esses bichinhos. Resultado? Cinco mosquitos mortos sem acender a luz do quarto. Só dando raquetadas pra lá e pra cá e ouvindo aqueles estalinhos deliciosos da eletrocução dos famigerados. Essa evolução tecnológica foi pra mim mais importante do que a simulação do big bang. Afinal, acho que não muda muita coisa nas minhas crenças não! A Criação não pode ser mesmo espontânea, tem um Gigante aí por trás, todo poderoso, mas bondoso, ao contrário do que me contavam na escola. Generoso e cúmplice, brincalhão e, pensando bem agora, tricolor. De coração. Por que não, mesmo que seja só pra não escapar da rima? É, e tão sagaz, que botou no mundo esses seres abomináveis, não por causa da cadeia alimentar, porque isso é teoria da evolução e estou falando aqui de outra coisa. Mas fez isso porque não queria que o Homem ficasse muito besta; então, Ele criou os mosquitos e as formigas. Ah, e pras mulheres não se sentirem totalmente poderosas, senhoras do céu e da terra, Ele criou as baratas: francesas, brasileiras, voadoras, cascudas, de vários tipos. E fez também a TPM, que acaba quando vem a menopausa... Mas agora me perdi... Eu tava falando de aranha???

quarta-feira, 31 de março de 2010

Dedicatória para Filandras

Diz-se que livro usado não comporta dedicatória.
Bobeira da ordem das ordens que se deve desordenar.
O uso embeleza as coisas,
Só que o Tempo em ti exagerou
e a Formosura ternamente
eternizou.

Andorinha só

Junto poetas
como casei meus pais:
sonho!
Eles não passarão,
mas eu passarinho
pois amo voar
e amo o ninho.

Meninos

Menino sonhador

Miro o espelho
de minha alma
e nele me vejo
menino atônito, sentado
na areia de beira-mar.

Vejo os navios sumindo,
rompendo o largo horizonte
e neles embarco
rumo ao infinito distante de meus sonhos.


Menino falador

Não se acanhe,
fale.
Diga qualquer coisa
sem pudores ou receio
de nada.
Eu,
quando governado
por meu coração,
me espraio e falo
até o que não devo.
Quando sinto,
sei que é real
e aí, falo,
às vezes até demais!
Boquirroto,
inconveniente, loquaz
até não poder mais.
O silêncio pode ser ensurdecedor!

Menino apaixonado

Meninos e meninas amam.
Amam-se e odeiam-se
sem parar.
Igual ciranda da vida,
sempre a ir e voltar.
Vem cirandar comigo
mas vem só para amar
que o ódio eu perdi na praia
nas cirandas de beira-mar


Menino enrolado

Me despeço de você
e fujo.
Busco um refúgio seguro
mas que não seja muro
de me esconder.
Fujo pra viver
e cumprir o meu destino
de ser feliz.

Me despeço de você
e das dores
que não quero mais.
O laço que desejei
não foi o cego nó
que me envolveu.

A morrer amarrado,
escolho viver só.

Medidas

Mágoa se mede em litros:
são gotas, são rios, são mares,
oceanos, são vales de lágrimas,
Salve Rainha desta minha dor.

Dor de amor pesa toneladas:
é chumbo que pinta o coração
cinza afundado no chão,
é precipício, profundeza, mais nada.

Saudade são léguas de lonjura
a me separar do seu olhar,
é infinito deserto e frio,
é o horizonte escuro e vazio,
é gesto suspenso no ar.

O cego e a minha dor

Hoje pela manhã,
enquanto eu chorava a tua ausência
- presente a meu lado a noite toda -
me passou um cego a gargalhar!
Sua bengala prateada
apontava para o céu claro
como se o sol
iluminasse o seu sorriso
que a escuridão desafiava.
Mais que o som,
a luz que ele brandia
me envergonhou
por minha tristeza escura e pequena.
E mais chorei ainda...

domingo, 28 de março de 2010

Tarde na favela

Eram 3 e pouco da tarde e a atividade com as crianças mal acabara... O calor era infernal, agravado por aquele abafamento da poeira que levantava, depois de tanto tempo sem chuva. A gente ainda conversava com algumas delas, que permaneciam na sala falando coisas aparentemente sem importância. Umas, pra estenderem o contato com o grupo, ficavam só implicando com outras. E iam ficando. A gente arrumava o material e conversava, ouvindo atentamente por saber da relevância de tudo que era dito. E do valor que havia em ser escutado. Principalmente para aquelas crianças, tão pouco visíveis pro mundo. Viver naquela favela já tão estigmatizada era mais penoso ainda pela carga de preconceito que colocava nas costas dos seus moradores.
De repente, começaram os fogos. Minhas sobrancelhas levantaram, como se isso me fizesse ficar mais atento, ouvindo e vendo melhor. Falei, como se brincando, mas à vera: “vamos rápido, pessoal, não quero dormir aqui hoje, não”! Os fogos continuavam e pareciam vir da entrada da favela, que fica na linha do trem, mas vinham também da Linha Vermelha. De repente, o silêncio. Eu não sei explicar, mas aquele silêncio foi o maior que já ouvi. E somente dias depois, lembrando daquele momento, foi que me dei conta de que o silêncio é ouvido. E a sensação era parecida, muito de longe, com o silêncio que nos surpreende ao anoitecer, quando percebemos que algum motor foi desligado e que estávamos provavelmente ouvindo-o o dia todo.
Até os passarinhos tão cantantes da favela se calaram. Olhei pras crianças com cara de surpreso e o Jefferson, adivinhando o que eu queria saber, me respondeu: “é o caveirão”! Fui até sala ao lado, de onde podia, de cima de uma cadeira, olhar pelo basculhante, a uma distância razoável da janela, e com alguma segurança de que não seria visto da rua. Havia uma movimentação pequena, mas brusca. Os poucos moradores que ainda passavam, o faziam apressadamente e sempre entrando em algum lugar: na loja de material de construção, na padaria, em algum portão... Enquanto isso, com passos precisos e curtos como num técnico e frio balé, alguns homens armados - em sua maior parte com fuzis - e vindos do lado da linha do trem, avançavam do extremo da rua, correndo alguns metros e se escondendo atrás de finos postes de luz que mal os encobriam. Era a polícia civil, o CORE.
Do lado de cá, bem abaixo de onde estávamos, a movimentação era diversa. Alguns homens trocavam as suas camisetas, sem que nisso houvesse algum sentido aparente. Tiravam umas e colocavam outras, sem uma cor dominante que sugerisse um uniforme ou coisa parecida. Recebiam as camisas de mulheres que levavam as outras. E se mexiam também, só que recuando em direção aos fundos da favela (dizem algumas pessoas que sua facção opta pelo não enfrentamento da polícia, preferindo o acerto de contas subterrâneo da corrupção). Também tinham um ritmo os seus passos. Mais nervoso, quase frenético, eu diria, mas havia alguma orquestração, algo combinado. As armas visíveis eram de menor porte: no máximo pistolas, mesmo a gente sabendo, por ter visto em inúmeras outras ocasiões, que na favela havia fuzis e metralhadoras. Mas ali, elas não eram vistas.
Do basculhante da sala ao lado, sempre à distância para não ser visto da rua, pude identificar de onde vinha o único ruído então audível: era o caveirão, que deslizava lentamente pela rua lateral. Não o do BOPE que, diziam as crianças, era bem mais aterrorizante, com suas canções (se é que se pode chamar a isto de canção) sinistras, falando de violência, da morte, do além, das almas... O do CORE era menos sinistro, apesar da cor escura e sem qualquer brilho que sugerisse alguma luz. Mas era muito assustador, remetia às trevas, principalmente para mim que nunca havia visto nenhum deles em atividade.
Foi então que aconteceu uma das coisas mais surpreendentes que vi em toda a minha vida. No meio do cruzamento da rua principal, onde teoricamente poderia haver um confronto entre os bandidos e os policiais, uma mulher negra - muito magra e alta - e uma outra, mais clara e baixinha, ambas aparentemente com bebês no colo, começam a atravessar de um lado para o outro, passando no meio do possível fogo cruzado. Fiquei quase sem palavras e, não acreditando que em seus colos houvesse bebês, perguntei ao Jorge, que estava ao meu lado: “são bonecos”? “Não”, me respondeu ele. “São filhos delas, mesmo. Elas são viciadas, trabalham pros bandidos. Elas fazem isso porque os bandidos mandam, pra eles poderem se ajeitar melhor aqui por trás”. Eu, sem acreditar, dizia “não é possível, cara. Como que elas são mães e fazem isso? Devem ser bonecos ou trouxas de roupa que elas estão carregando...”
Algum tempo depois, logo a seguir a uma movimentação maior dos policiais que se aproximavam do lado em que estávamos, as mesmas mulheres voltam, dessa vez com carrinhos de bebês, sendo que a mais alta, puxava pela mão um outro menino de uns 3 ou 4 anos. Eu só consegui soltar um “filha da puta”, que foi seguido das risadas de algumas das crianças que permaneceram com a gente. E, entre assustado e estarrecido, me perguntei quanto valeria a vida daquelas crianças para elas mesmas... Se as suas mães as colocavam literalmente no meio do fogo cruzado, contrariando todos os instintos mais básicos da humanidade e da Vida, quanto aquelas crianças achariam, ao crescer, que suas vidas valiam?
Acordei triste e desanimado no dia seguinte. Mais triste ainda fiquei quando o Jorge me ligou de manhã e disse: “Não falei? As duas estão jogadas pólas ruas da favela, ainda doidas, cheiradas, sujas... Passaram a noite toda cheirando e fumando o que ganharam dos bandidos pelo trabalhinho de ontem...”
Senti – a ainda sinto quando conto essa história que presenciei e desejei que fosse sonho – uma enorme vontade de chorar...

domingo, 7 de março de 2010

Palavras perdidas

Uma dor no ciático atrapalha o sentar. Fico meio de banda, enquanto escrevo, mas apesar da dor, escrevo. E o faço porque preciso. Não sei bem como é isso, só que é uma necessidade... Isso às vezes me dá, como outras precisões. Não chega a ser como comida, por exemplo, mas é imperativo. Quando isso batia, há muito tempo atrás, eu pegava qualquer pedaço de papel, podia ser um guardanapo ou um papel de maço de cigarro, e escrevia. Até hoje guardo poesias de boteco, escritas em balcões tão apressados como sujos e molhados. Também reflexões turvas ou límpidas, turbulentas e profundas ou lentamente frugais. Marcas de café, cortes imprecisos no papel e linhas tortas como as escritas então colorem esses papéis que guardam pensamentos, momentos ou amores completamente esquecidos. Agora, sento na minha pós-moderna Olivetti da Dell e solto os dedos no caderninho organizado e limpo do Word. O segundo dedo da minha mão direita já não tem mais o calinho vermelho que às vezes doía e me fazia pensar na escrita. Não, agora eu digito num silencioso e macio teclado, não tenho que apagar mais nada e, assim, não ficam marcas do que me arrependi de ter escrito. Tudo é efêmero, então não tenho que rabiscar e riscar intensamente o papel até esconder o que me envergonha ou compromete; simplesmente deleto e é como se não tivesse escrito. Estranho isso de não deixar marcas... Será que não ficam mais em lugar algum resquícios do que se escreve e depois se apaga? Nessa virtualidade toda que abriga nossas infinitas caixas postais e fotos e textos e etecéteras não haverá um cantinho pro que foi escrito e censurado? Praquilo de que nos arrependemos, que achamos inadequado, antiquado, ultrapassado, absurdo, feio? Que não queremos que saibam da gente, que pode revelar além da máscara que projetamos? Mesmo que fosse um espaço com acesso super restrito, onde só se entraria com senhas fortes, talvez somente pela percepção do cheiro do autor... Nas antigas cartas, especialmente aquelas escritas em papéis tão leves e finos que se prestavam até mesmo a fins inconfessáveis, ficavam sinais das letras ou palavras escritas e proscritas nos versos dos papéis, como testemunhos teimosos que das janelas vizinhas revelavam os caminhos do pensamento até ali. À contraluz se podia imaginar algo que estivesse ali escrito, fragmentos dos arrependimentos ou tão somente de deslizes ortográficos... Será este mais um sinal do tempo sem-vergonhamente apressado que nos atinge no dia-a-dia com sua velocidade desrespeitosa que contraria os domingos?
Por isso, escrevo como se fosse outro que não eu e compreendo o poeta que eram vários. Só assim escapo desse algoz censor que me poda a língua no que corta das palavras desenhadas pelos dedos. Então, nada deleto ou apago e o que escrevo é esse momento que está acabando de passar. E assim, ele e os outros ficam, eternizam-se sem arrependimento ou condenação.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Manhã de aniversário

Amanheço aniversariando e me dou de alegria a (re)leitura do Livro sobre Nada. Manoel de Barros puro, estonteante de surpresas. Livro em que ele desinventa as coisas só pra fazer arte com as palavras, pintar cores que não foram inventadas, visões que ainda não foram vistas... “Mano Preto perguntava: Será que fizeram o beija-flor diminuído só pra ele voar parado?” ...ou visões que foram vistas por todos, mas que só ele (en)cantou: “Um lagarto atravessou meu olho e entrou para o mato.”
Meu aniversário sempre caiu nas férias, perto do Carnaval, verão, sol forte e praia. Geralmente, água do mar quente, não sei porque. Se bem que hoje ela deve estar fria, já que ontem estava gelada, parece que as correntes lá de Cabo Frio finalmente chegaram à cidade. Lembro de como eu boiava pra lá da arrebentação, olhando o céu e depois a praia com alegria latejante de estar fazendo aniversário... O bolo coberto de jujubas coloridas, o furo que ficou na cobertura quando roubei a primeira delas antes da hora, eu passando o dedo e alisando a cobertura pra disfarçar o buraco. A história que contavam do tio Expedicto, que com a mania de furar os bolos, foi obrigado pelo vovô a comer um bolo inteiro. Passou mal, mas nunca mais furou bolo, diziam. Tio Expedicto, papai, vovó (Dolores), Lelé, já tenho muitos mortos queridos. Ou queridos mortos. Saudades. Engraçado pensar na morte no dia do aniversário. Mas já que ela existe mesmo, então, é natural que passeie por aí e nos pegue de vez em quando. Mesmo que seja só no pensamento. Aliás, eu é que peguei ela e, ainda assim, não foi pela mão, foi só pelo pé da saudade. A Adélia Prado fala de um outro pé de saudade, que é roxo e não é o pé da saudade que eu peguei agora. A saudade roxa que ela fala nasceu na terra onde enterrou seus pais:
“Mãe, ô mãe, ô pai, meu pai.
Onde estão escondidos?
É dentro de mim que eles estão.
Não fiz mausoléu pra eles,
pus os dois no chão.
Nasceu lá, porque quis,
um pé de saudade roxa,
que abunda nos cemitérios.
Quem plantou foi o vento,
a água da chuva.
Quem vai matar é o sol.”
O sol me chama pra rua, mas não vai me matar. Talvez me torrar. Vou pra praia, hoje reservei o dia pro ócio, pra comemoração, celebração. Ver minha mãe, pedir-lhe a benção, coisa que só aprendi a reconhecer a beleza nos meus cinqüenta e cinco anos. Mas que bom que pude reconhecer e, então, pedir e receber. A Vida é maravilhosa, cheia de curvas, retas intermináveis, surpreendentes solavancos, calmarias, arrebatamentos e ventos. Tenho medo do Vento, além de que ele me machuca a pele, me dói. Talvez por isso, eu tenha deixado me guiar tanto por ele. Ou não. Vou brincar de Manoel de Barros e vou desinventar o Vento, já que ele faz curva em um lugar tão distante que a gente só ouve falar. Então, posso dizer, sem medo de ser injusto, que o Vento é o que eu inVento. Até porque hoje é meu aniversário e quero brincar.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Elixires da vida

Tenho atendido ultimamente algumas mulheres com taxas de colesterol surpreendentes. Umas, têm colesterol baixinho, próximo ao colesterol de uma criança e ficam orgulhosas ao pegarem os resultados no laboratório ou baixarem da internet. Afinal, enormes sacrifícios na dieta e também nos exercícios físicos serviram para alguma coisa. Tudo em nome da saúde, apesar de que isto tenha representações muito diferentes para cada uma delas: para umas, significa se distanciar de uma morte angustiadamente temida, para outras tem o significado de estar em forma, mais bela internamente - até no sangue - que as amigas, para terceiras, valores tão baixos representam a afirmação do autocontrole que as faz mulheres tão poderosas. O que mais me surpreende é que algumas têm o HDL (que é o bom colesterol) maior do que o LDL (que seria o mau).
Os resultados entregues às pessoas trazem os valores de normalidade, e estes, no caso do colesterol, com muita freqüência, também surpreendem: , de tanto a tanto, alto, acima de tanto, mas não trazem o seu valor mínimo! E isto pode levar algumas pessoas a acharem que quanto mais baixo melhor e, então, colesterol zero seria o ideal a ser alcançado. Será isso verdade? Não, claro que não! O colesterol está presente nas membranas de todas as nossas células, participa da formação dos nossos ácidos biliares - portanto envolvido na digestão das gorduras -, da vitamina D (sem a qual o cálcio não se fixa nos ossos, gerando a osteoporose) e em diversos hormônios, especialmente os sexuais. Ou seja, precisamos MUITO dessa molécula de tanta importância para a nossa saúde. Mas então, porque esse olhar enviesado da nossa Ciência (perdoem a letra maiúscula, é hábito...)? A resposta é conhecido: o colesterol foi marginalizado desde que se descobriu sua participação nas doenças cardiovasculares, tão presentes no mundo desenvolvido e, inclusive, nos últimos anos, também no Brasil. Assim, desde a década de 60 do século passado que cientistas dos países do dito Primeiro Mundo nos ensinaram que o colesterol era ruim e deveria ser combatido. Indiscriminadamente. Passamos, consequentemente, décadas engolindo (argh) margarinas, enchendo os cofres de Anderson Clayton, Unilever e outras multinacionais, e deixamos de comprar aquele leite integral que, após fervido, nos dava generosa nata, com a qual em nossa própria casa, podíamos fazer a mais deliciosa das manteigas. Era só bater, bater, bater... E ainda tinha aquele barulhinho indicativo de que algo de saboroso estava sendo preparado! A marginalização das manteigas fez com que as vendas de margarina disparassem: no Brasil chegam a 500 mil toneladas anuais, enquanto as de manteiga empacaram a 1 mil! E nenhum cientista jamais investigou se comer um pão com aquela manteiguinha barata feita em casa pela vovó fazia nosso cérebro orgasticamente liberar algum neurotransmissor que nos fizesse bem... Pena! Ponto para as margarinas, apesar de que, posteriormente, foi descoberto que elas teriam gorduras trans, muito mais nocivas à saúde do que as gorduras saturadas, entre os quais se encontra o famigerado colesterol!
Mas em compensação, hoje compramos nas farmácias medicamentos que nos baixam o colesterol, incorporam o cálcio ao osso na marra, dão potência para os nossos pintos moles e ainda lubrificam a pele e as vaginas das nossas ressecadas e desmotivadas mulheres. Tudo vendido pelos mesmos conglomerados que fabricam margarinas e contratam as pesquisas que nos ensinam a como cuidar de nossos corpos. É que é difícil mudar hábitos e todos sonhamos com pílulas mágicas. Se estamos gordos, tomamos remédios para diminuir o apetite e aumentar o consumo calórico ou até mesmo cortamos um pedaço do estômago... Se não damos conta do trabalho, é muita coisa!!!, tomamos um acelerador das sinapses nervosas pra turbinar nossos cérebros, se entristecemos com nossas impotências, nossas perdas, não choramos nosso luto, temos anti-depressivos para tomar... E seguimos atônitos nossa humana marcha, diante dos saberes absolutos dos cientistas, como diante da Vida e da morte.

Pour Elise

Fui dormir tarde e acordei hoje cedo,
ainda encantado.
É um jeito de ver a vida,
as coisas que passam
com o olhar suavizado pela beleza.
Como se um condão tivesse tomado o coração
e uma unção o abençoasse com a paz,
mesmo que ele se agite e inquietamente
queira, anseie por mais.
Rimam pobremente paz e mais.
E nobremente.
Pobre também mente.
A mente mente,
só os corações não.
E o meu acha que viu a Verdade
mas eu sei que ele reviu a Beleza.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

TODO PAI É GRANDE

TODO PAI É GRANDE

Eu já tinha atendido o Lucas quatro vezes antes daquela. Ele tinha uma bronquite forte, daquelas de parar nas emergências pra nebulizar, mas logo com a primeira medicação, começou a melhorar muito. Quando voltou pra segunda consulta, já estava há umas duas semanas sem chiar. A terceira, eu marquei só pra três meses depois. Como ele morava longe - em Niterói, pra ser mais exato, em Camboinhas –, não havia tido mais nenhuma crise e até tivera umas manifestações possíveis de cura definitiva sob o ponto de vista homeopático - como um eczema que reapareceu por uns dias e era igual a um que ele tivera aos dois anos de idade - falei pra mãe dele que podíamos espaçar as consultas para de seis em seis meses.

Nessas consultas, eu falava com ele sobre futebol, conversávamos sobre Camboinhas, onde ele morava e eu pescara algumas vezes, quando morei em Niterói... E me lembro que uma vez, fiz uma mágica simples que havia aprendido e ele ficou encantando, curioso, querendo descobrir o segredo... Gostei muito dele e ele de mim e ficamos amigos.

Por isso o meu espanto quando naquele dia, ele entrou no consultório com a cara amarrada, emburrado e sem querer assunto. Ficou quieto no canto da sala, me olhando de lado e com uma tromba enorme. Ele tinha 9 anos na época e se tratou comigo até uns 12. Depois, perdi de vista. Mas naquele dia, ele estava realmente zangado. Perguntei à mãe o porquê e ela explicou:

“A consulta já estava marcada há muito tempo, eu tinha me organizado pra trazê-lo e pra isso, avisei no trabalho que ia sair mais cedo. Quando cheguei em casa, ele estava na praia com o pai. Aí, peguei ele lá, mandei tomar um banho rápido e viemos. Mas ele não queria vir e só dizia que não estava com tosse, nem falta de ar, portanto não tinha porque vir à consulta...”

Pensei no quanto ele devia, justamente, estar puto. Sair da praia em Camboinhas, onde se divertia com o pai, e vir pro Rio pra uma consulta médica em pleno mês de fevereiro com aquele calorão danado... Tentei, então, contornar a situação e comecei a puxar assunto. Falei do pai dele:
“Teu pai nunca veio aqui, né? Eu não conheço ele. Como é que ele é?” Como ele desse de ombros, continuei:
“Teu pai é legal”. Ele assentiu com um gesto econômico da cabeça e, então, eu prossegui:

“Teu pai é grande?” Foi então que o Lucas me deu um desses presentes que a gente ganha quando atende os pacientes com o coração aberto:
“Claro, todo pai é grande!” sentenciou meu amiguinho, seco, definitivo, como que me repreendendo por não saber algo tão óbvio! E me abriu as portas para um desses insights inesquecíveis que a gente tem nos momentos mais inusitados, como em baixo do chuveiro ou numa caminhada despretensiosa.
Fiquei algumas horas afetado pela sua fala, porém feliz com a descoberta. “Todo pai é grande!” Não tem jeito. Vivo ou morto, presente ou não, afetuoso ou rude, conhecido ou não, todo pai é grande. Acho que ali, eu comecei a perceber o tamanho do meu pai dentro de mim, o meu verdadeiro tamanho e a enorme responsabilidade da paternidade. E vi como todo pai é grande!

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Drogas e presidentes

Recentemente, Fernando Henrique Cardoso, reunido com outros ex-presidentes do continente, propôs a reabertura da discussão sobre a legalização ou descriminalização das drogas. Salvo engano, FHC fumou e não tragou, como Clinton. Já o Obama, parece que tragou e, li outro dia, até cheirou. E chegou onde chegou... Bem mais longe do que o ex-fallecido Collor que pegava mais pesado: não só preferia drogas das mais pesadas como, segundo o falecido e X9 irmão, também unia o útil ao que o agradava e usava a droga administrada como supositório, talvez para preservar seu bem dotado nariz, ou então por afinidade ou gosto! Seu reinado não podia dar certo mesmo, e era muito estranho ver aquele avião do seu cúmplice PC Farias, o “Morcego Negro”, entrando e saindo do país carregado sabe-se lá de que... Incomodou tanto que até os mais de 300 picaretas citados à época pelo atual presidente Lula resolveram acabar com a(s) festa(s) na casa da Dinda.

Mas a verdade é que a discussão é bem-vinda. E como tudo tem dois lados, pelo menos, as argumentações de ambos, defensores e detratores, são justificáveis. Teoricamente, a grana fabulosa que o tráfico movimenta deixaria de servir à corrupção e à compra de armas, podendo ser usada pelos equipamentos de saúde no tratamento dos usuários. Diversos estudos feitos onde houve a descriminalização mostram que não houve aumento do consumo. Minha sensação é de que poder comprar um baseadinho na farmácia vai dar um ar menos grave ao uso das drogas e, por outro lado, quem conhece algum dependente químico sem recursos para se tratar sabe que, sem muito dinheiro, o sujeito está condenado ao sofrimento crônico ou somente largará o vício se o substituir por uma fé cega dessas forjadas nas igrejas neo-pentecostais. Com a descriminalização, esses recursos poderiam ser usados no tratamento dos doentes. Mas, conhecendo nosso país, nossos políticos, sabemos que tudo pode acontecer com o dinheiro público. Imaginem se o imposto arrecadado com as drogas, em vez de ir para os cofres do Ministério da Saúde, for deslocado para cobrir o rombo da Previdência. Ou mesmo, se for para a Saúde, imaginem o dinheiro sendo realocado em cirurgias de alta complexidade, como transplantes ou procedimentos sofisticados que atenderiam especialmente a uma elite privilegiada que tivesse acesso a eles... Indo parar nas meias e cuecas de deputados... Outra questão preocupante é a situação dos policiais. Como farão os nossos mal pagos homens da lei, que já se acostumaram com os recursos da corrupção advindos? E os verdadeiros grandes traficantes, residentes na orla da zona sul do Rio de Janeiro, com casas de veraneio no sul da Bahia e a mixaria nas ilhas Cayman, como resistirão?

Há várias questões a serem respondidas: mas o que não pode realmente continuar é esse processo de entupimento cada vez maior de nossos tribunais e cadeias, ambos já superlotados, com pessoas doentes ou que usam drogas recreativamente, como tantos ex-presidentes da nossa e de outras repúblicas já o fizeram.

domingo, 3 de janeiro de 2010

Ladeira dos Tabajaras

Passei a virada do ano na casa do Zeca. Zeca é meu amigo de séculos atrás. Coração generoso como poucos que conheço. Ele é um homem magrinho, que se revelou enorme na paternidade terna e eterna que vive com seus dois filhos, agora já adultos. Descobriu, desde que o Daniel nasceu, que filho pertence a uma categoria à parte. E assim, vem vivendo sua vida simples exercitando cotidianamente o dever e o prazer da criação.
Ele me chamou pra ver os fogos da sua laje. De lá, disse-me ele, "dá pra ver tudo... "
Eu já passara dois reveillons na favela, quando namorava a Vera, ainda com 16, 17 anos. Era outro morro, o Chapéu Mangueira, e eram outros tempos também. Na época, os bandidos, a gente sabia quem eram, as bocas, a gente sabia onde ficavam, mas as pessoas que moravam na favela eram as donas do morro. Faziam suas festas sem medo, a não ser das enchentes e das remoções. Temia-se que o Lacerda, governador na época, mandasse tacar fogo no morro, como - dizia-se - fizera em outras favelas. Tudo na surdina, da mesma forma que mandava matar os mendigos e jogar no rio da Guarda... As pessoas eram felizes, apesar de todas as dificuldades que enfrentavam. Lembro que ainda havia lavadeiras que pegavam roupas sujas nas casas das madames e levavam pra lavar no morro. Punham as roupas pra quarar nas pedras e depois as penduravam em intermináveis e coloridos varais. Lá, havia o sol que nos apartamentos faltava. Algumas roupas eram passadas, outras eram entregues sem passar mesmo. Em algumas casas não havia água encanada, então as mulheres subiam com enormes latas cheias de água equilibradas na cabeça... Tinha um paninho que elas enrolavam e punham na cabeça pra acomodar os latões em cima. Aí, subiam as escadas mexendo o corpo suavemente, de um lado pro outro, num rebolado característico que mantinha o pescoço estável pra não derramar muita água. Lá de cima do Chapéu Mangueira também dava pra ver o mar. Era uma vista linda e o frescor do mar chegava suavemente o tempo todo, com o seu cheirinho inconfundível. Sinto saudade dessa maresia, da vista deslumbrante, do primeiro amor...
Da laje do Zeca a vista é um pouco menor, mas dá pra ver muito do marzão de Copacabana, a ilha Rasa com seu farol e as Cagarras. E esse ano, todos tínhamos motivo pra comemorar: a favela voltara a ser deles, moradores. No alto da ladeira, o caveirão era a imagem mais impactante da presença da polícia. Mas, ao contrário de outros tempos, em que ele subia a ladeira tocando canções sinistras, que assustavam crianças e adultos, ele ali estava parado, somente como um sinal de que a polícia estava de olho. Não mais em todos, bandidos e moradores. Estava ali pra garantir que os donos do pedaço eram os que ali moravam. Como a Madá, mãe do Zeca, 80 anos de trabalho e luta, uma mulher magrinha, pequenina, mas forte o bastante pra criar aquele monte de filho, todos pessoas do bem. O morro agora é novamente dela, que mora ali desde novinha, é do Zeca, de suas irmãs Alice e Marcia, que ali nasceram e iam pegar água na mina que havia do lado do cemitério. Mina que secou, depois que construiram um monte de casas praquele lado, mas que era onde eles quando crianças pegavam água pra Madá lavar as roupas. E na laje do Zeca, onde agora não tem mais bandido, eu atravessei o ano e cheguei em 2010. Feliz, vivi a alegria de todos que moram ali, mirando o horizonte iluminado pelas múltiplas cores dos fogos. E acordei no novo ano com o olhar verde de esperança.