segunda-feira, 2 de agosto de 2010

CAROÇO MORREU


Morreu o Caroço e acho que fiquei de luto, daí ter parado de escrever e postar minhas palavras no blog... Senti a sua partida menos do que sentia sua solidão. E chorei, comovido, na missa de sétimo dia quando o padre falou seu nome: Hilbem Alves dos Santos. Caroço gritava o seu nome alto, com sua voz de alto-falante-camelô. Gritava, orgulhoso, e secundava-o com o nome do pai, “filho de Francisco Alves dos Santos”, como que dizendo a quem o ouvia: não fui filho largado, não, tive pai. Mesmo sendo bastardo – sua mãe, índia, essa sim foi abandonada por Francisco, que era casado e tinha outra família -, seu pai o colocou pra estudar num colégio de padres. Às vezes, eu implicava com ele dizendo que fora educado por pedófilos... Ele ria e dizia que não. Tinha, sim, beijado muitas vezes aquelas “mãozinhas branquinhas e lisinhas de quem nunca pegou no pesado”, mas saiu de lá virgem. “Frente e verso”, dizia, rindo abertamente. Depois de cinco anos de estudo, pôs a perna no mundo e veio dar aqui no Rio de Janeiro, “a cidade mais bonita” de todas que ele conheceu e que foram “milhares”.
Morreu num domingo, depois de ter bebido no sábado uma garrafa inteira de 51, misturada com guaraná Tobi, sua preferência. Dizem os que estavam por perto que já caiu durinho, língua arroxeada e umas pregas ao redor da boca que insinuavam seu sorriso sardônico de sempre. Era uma figura querida de muita gente. Mas era um farrapo, por outro lado. Tinha uma filha em Roraima, de 27, 28 anos, dentista criada por outros, mas a quem ninguém conseguiu avisar por total desconhecimento de dados. Nem o nome se conhecia. Quando ele falava dela, revelava um orgulho que me soava estranho: uma filha que ele viu duas, três vezes, deixou com a mãe para ser criada por outros, de quem não tinha sequer uma foto, a quem jamais vira depois de formada... Esse orgulho talvez fosse da consciência que a criação nos dá de que a vida continua. Sempre. E, mais ainda nos filhos.
Dias depois, aquele pedaço de calçada que era sua casa, seu palco, estava incrivelmente vazio. Era lá que ele armava sua mesinha pra vender toda a sorte de bugigangas: elásticos pra cabelo, coadores de café, jarros de vidro de gosto duvidoso, latas de biscoito velhas, chaveiros, antenas de TV, celulares velhos e carregadores diversos. Dias antes, eu o vi bem vestido e o cutuquei, perguntando: “Foi fazer exame de fezes?” Ele respondeu: “Estou abrindo uma filial no Catete e fui até lá pra resolver um probleminha no ponto...” Ele andava zangado desde que a Guarda Municipal levara suas coisas. Dizia: “São uns muquiranas! Não aqueles muquiranas que dão na cadeia, não!”, referindo-se a um tipo de piolho comum nas cadeias. “Muquirana que estou falando é de gente que não presta, que não dá pra confiar! Eu sou deficiente físico – referia-se à cegueira de um dos olhos -, eu posso vender na rua! Quando sair minha autorização eu vou fazer eles engolirem! São uns covardes.”
Quando ele bebia demais e ficava chato, perturbando os outros, eu o ameaçava: "vou te tirar da internet", em alusão ao texto que eu postara com sua foto há um ano. Ele, mesmo sem nunca tê-lo visto, sem sequer ter entrado uma única vez na internet, me olhava acusando o golpe e retrucava: "aí, não vale, né!" E dava uma aquietada. Em sua homenagem, portanto, perpetuo sua imagem nas nuvens... 
Morreu o Caroço! Faz falta a sua voz. Mas faz mais falta ainda o seu sorriso que, com a ausência de dentes que o sustentassem na boca, transparecia nos olhos. Até naquele olho direito vazado, embaçado, azulado pela cegueira... Era um sorriso da alma. Não é à toa que ele chamava os especialistas que o trataram na época do acidente que o cegou de almafotologistas...