segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Domingos


É um domingo preguiçoso. Nem os pássaros que despertam as manhãs deram o ar de seus cantos, o tempo arrastado dos domingos parece suspenso pela chuva que ameaça voltar, pelas nuvens que acinzentam o sol... Até mesmo as crianças parece que sumiram. Sinto falta não da sua algazarra das segundas-feiras, mas da alegria esperançada que elas cantam nas manhãs de feriados e domingos.
Domingos, aliás, é o nome do porteiro. Acho que não é coincidência ele parecer preguiçoso, pachorrento, escorregar pelo dia como se somente esperasse seu fim. Vem do batismo. Sentença de fundação, seu ritmo está gravado na pedra fundamental, não dá pra ser diferente, seria trair seu pai e toda sua história, perdida no sertão de um nordeste distante, mas não esquecida. Então, porque a pressa? As chuvas vêm e voltam quando assim desejam. E as secas permanecem também o tempo que o sol decidir levar pra afastar as nuvens, soprá-las com seu bafo quente, secá-las. E os domingos, dias ou gentes, continuarão por aí quase dormindo...

Baixinho

Semana passada me dei conta de que parei de escrever novamente depois da morte de uma pessoa querida. Ano passado foi o Caroço. Este ano, foi o Soró. Pessoas humildes cujas belezas ocultas me fascinavam. Talvez as mortes deles tenham me calado a escrita um pouco, talvez o tema da morte, meus medos, minha solidão, não sei...
Até que semana passada, soube da morte do Baixinho. Seu nome era José de Ribamar e, como o nome indica, era maranhense. Nascido em Barra do Corda, tinha uma ascendência indígena, dos canelas, ele achava, e dizia que lá nas suas terras, já em criança se fumava maconha pelas ruas de terra. Não sei se era verdade ou justificativa para seu uso infinito da erva, ou para sua prisão, na década de 60 ainda, por causa dela. Contou-me, já lá se vão mais de 40 anos – e me espanto com o tempo todo passado – que apanhou muito na cadeia, o que lhe custou uma lesão na coluna lombar, da qual exibia a cicatriz como troféu. Depois que saiu, casou-se com a nêga veia, com quem viveu e a quem respeitou até a morte. "Sofria do coração", dizia dela, era uma negra forte, bem maior do que ele e que "lhe dava umas braçadas se ele não andasse na linha"... Tinham um barraco na Babilônia, onde viveram quase 50 anos. Depois que ela morreu, ele aumentou o uso de cachaça e deu de cair pelas ruas, chorando sua solidão pelas calçadas sujas. Até que um dia, teve que operar a próstata. Greve de médicos, ele perambulou pela cidade meses com uma sonda na uretra, expondo e denunciando o desprezo pela pobreza que se expressa de forma mais cruel na saúde pública. Até que operou novamente e ficou eterna e ternamente grato ao "grande doutor operador" que resolveu seu problema.
Dormia a sesta todo dia, encostado numa amendoeira torta pelo vento e pelo tempo. Sempre tinha um sorriso pra mostrar, na boca e nos olhos, inocente ou malicioso. Mesmo quando estava zangado, dava uma risadinha, só que meio sardônica...Largou a cachaça por pressão da dona Adélia, portuguesa dona da floricultura que o adotou, dando-lhe as entregas de flores e os pagamentos para fazer. Continuou fumando seus baseados até que um dia não apareceu no trabalho. Ela estranhou porque ele estava ali todos os dias, sem falta. Não pegava gripe ou resfriado que o impedissem de aparecer.  Quando faltou ao trabalho pelo segundo dia direto, dona Adélia ligou para um vizinho dele e disse, “vai lá ver porque aconteceu alguma coisa”. 
Ele estava morto desde a véspera. Ninguém soube, além de uma meia dúzia de pessoas que lamentaram por cinco minutos e esqueceram. Sua vida foi pequena, espremida numa enorme miséria, de horizontes estreitos que, só talvez sua maconha conseguisse ampliar.  Mas por causa da morte do Baixinho, volto a escrever, a postar alguma coisa nesse varal etéreo que é um blog.