Ontem, reencontrei o Caroço. E, ao contrário das outras vezes em que conversamos, dessa vez eu o ouvi melhor, talvez sem o preconceito de vê-lo como uma figura folclórica e engraçada. Ele não estava servindo os fregueses, mas bebendo alguma coisa que não identifiquei o que era. Sentei-me ao seu lado na única mesa em que havia uma cadeira disponível. Ele sintonizava alguma estação no radinho de pilha ligado ao ouvido por um redifone. Parecia pensativo ou talvez triste. Como sempre, filosofava e bradava suas percepções com uma voz poderosa como a de um alto-falante. Sempre com o redifone no ouvido, falou que “a vida é um mistério”... “Mas é boa”, continuou. E a seguir, “só sinto saudade da minha infância”. Perguntei-lhe de onde era: “Roraima”, disse. “Sou filho de índia. Meu pai pegou ela na aldeia. Eu só vim a saber com uns oito anos. Mas tive estudo. Fiquei sete anos em colégio de padre, mas logo, logo já era independente. Aí, rodei por isso aí tudo e vim parar aqui no Rio de Janeiro. Mas conheço todo o Brasil, de norte a sul.” Perguntei do que sentia mais saudade e ele falou: “Do rio. Tomava banho, nadava, deitava em cima dos troncos de árvore e era como se fosse uma canoa, ia pra todo canto em cima dele...”
Contei que há meses, ele se tornara personagem do meu blog. “Bloco?” indagou ele. “Não, blog, é um negócio que a gente escreve na internet”, simplifiquei, com preguiça de explicar. “Eu escrevi sobre o teu nome e o apelido de Caroço”. Então, ele murmurou, como que pensativo, reflexivo: “Hiiilbemmm”. “O queee???, perguntei”. E ele: “Hilbem, meu nome”! “Porra, Caroço, o nome que você me deu naquele dia foi outro, parecido com Washington”, reclamei, quase pulando da cadeira. Então, ele me respondeu com a maior segurança e serenidade, sorrindo com o único olho que via: “Mas nesse dia eu não tava falando da infância. Com infância não se mente, não se brinca... Quer dizer, se brinca, claro que sim, não é disso que eu tô falando”, disse, já rindo com a confusão do sentido das palavras. E ficou olhando pra longe com o único olho que enxergava e tinha uma saudade feliz no olhar, como se naquele instante, ele estivesse navegando pelo seu rio da infância. Seu olho cego, o direito, me incomodava e perguntei: “como você perdeu a vista?” Eu trabalhava na firma de gelo, fui encher o pneu do triciclo e não sabia usar a bomba, aí ela pulou que nem uma cobra e veio no meu olho. Tratei mais de 30 dias até que o médico disse, ‘não tem jeito, cegou’. Fazer o que? Eu não tinha experiência, acontece. Mas tratei mais de um mês. Só que não teve jeito. Fui lá na Pasteur naqueles médicos de vista... Almafotologistas, né?"
Ele chamou o rapaz que servia, pediu uma genebra pra garganta dele que estava “seca” e eu me levantei, pensando que o Caroço sabia de muito mais coisa do que eu imaginava. Talvez até de uma etimologia emocional ou coisa assim: Almafotologista...
sexta-feira, 23 de outubro de 2009
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