domingo, 27 de dezembro de 2009

Inspirado em Adélia Prado...

No amor não cabe a dureza e,

como é coisa de parceria,

cada um tem que um pouco amolecer.

Mas e os durões, como fazer?

Têm que deixar na frente o coração,

que a razão se perdeu tem tempo

e amar rima com espairecer

(mesmo depois de ralar

e deixar a cabeça cansada

de tanto pensar).

Espairecer é como espraiar :

é parente de remanchar

que minha bisavó falava remanchear,

que nasce em remanso,

cresce em chiar,

e dá preguiça só de pensar...

É que amar não é dureza não!


COMEÇO DE APRENDIZAGEM

(Adélia Prado)

Amor é ofício de a dois,

plantada estrela por dois.

amor no peito de um só,

perdido de parelha,

solitário de aurora,

não é amor: é uma dor

que não dá fruto nem dá flor.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Noite de Natal

Essa época de festas de fim de ano é confusa, para mim, em todos os sentidos. A correria, os engarrafamentos, a pressa, a rua e os lugares todos cheios, é como se o tempo não coubesse nos espaços de que dispomos. É uma busca frenética, como se algo houvesse a preencher, a hora fatal estivesse chegando e ainda o vazio insistisse e persistisse. Talvez a gente tenha perdido algo irrecuperável e não tenha retorno. Não sei, algo que nos tenha escapado por entre os dedos, areia de praia em mão de criança...

Lembro da primeira bicicleta, uma Monark verde musgo, modelo BR 65, aro 26, na qual teimei em andar mesmo dentro de casa, pneus vazios, minha mãe reclamando e minha avó sentenciando: “deixa o menino experimentar o presente, é Natal”. Minha mãe quase sempre se curvava às decisões da minha avó. Quando não, ficavam sem se falar por séculos. Naquela noite, o espírito de Natal prevaleceu e eu pedalei pela sala até o elevador sem conseguir fazer a volta... Minha avó ajudou, virando a bicicleta e me propiciando mais uma breve pedalada. Naquela bicicleta percorri muitos continentes, desbravei incontáveis matas, trilhei tantos caminhos coloridos que marquei com arco-íris o meu olhar. Muito joelho ralado, esporros, curativos, meu tio passando Iodex no machucado e contando estórias de soldados que se feriram na guerra. Heróis! Naquela noite em que ganhei a bicicleta, senti uma das maiores alegrias de que me lembro.

Não tenho certeza se foi a mesma, mas talvez esta tenha sido também a minha primeira noite triste de Natal. As imagens são muito vivas, era noite e eu vi um menino negro, descalço, passando em frente ao prédio em que morava. A gente chamava os meninos pobres, freqüentemente negros ou mulatos que perambulavam pelas ruas, de moleques do morro. Eles moravam nas favelas vizinhas e eram temidos por não cumprirem as mesmas regras que nós e por serem brigões. Tinham pouco a perder. Além disso, dizia-se que roubavam. Eu nunca havia visto nada que justificasse a fama e até nutria uma inveja secreta pela liberdade que eles revelavam na intimidade que tinham com a rua, no jeito despreocupado com que vagabundamente vagavam pelo espaço que até parecia lhes pertencer. Só muito tempo depois, descobri que o espaço que tinham era quase nenhum: moravam em casebres apertados, todos num mesmo cômodo freqüentemente... O chão de terra, como das casas da roça, tinha marcas de pingos das goteiras crônicas, pras quais já havia até vasilhas previamente reservadas... Daí estenderem até as ruas as suas casas. Eu, na minha infância superprotegida, os invejava. Afinal, eles não iam à escola - e qual criança gosta da escola? - e não tinham mães pegando nos seus pés o dia todo (pelo menos era isso que eu achava), mandando ou proibindo de fazer coisas. Naquela noite, passou aquele menino que até hoje mora na minha cabeça: de short e sem camisa, descalço, chutava as poças não como diversão, nem por raiva. Era um sentimento que uma palavra talvez não comporte. Chateado, tinha tristeza misturada com revolta - que é parente da raiva - no olhar. Isso, eu senti ou imaginei, pois seus olhos miravam o chão todo o tempo. Mas o que ele tinha no peito contrastava violentamente com as luzes da rua e com o seu brilho refletido na água da chuva refrescante do verão. E é algo que eu sinto até hoje: um pouco da minha alegria ficou ali.

Meus Natais ficaram para sempre marcados. Saúde, paz, amor, alegria, fartura, presentes, beijos, abraços, tudo isso eu desejo a todos, mesmo sabendo que ao deitar, depois da festa, vou estar um pouco triste.