Eram 3 e pouco da tarde e a atividade com as crianças mal acabara... O calor era infernal, agravado por aquele abafamento da poeira que levantava, depois de tanto tempo sem chuva. A gente ainda conversava com algumas delas, que permaneciam na sala falando coisas aparentemente sem importância. Umas, pra estenderem o contato com o grupo, ficavam só implicando com outras. E iam ficando. A gente arrumava o material e conversava, ouvindo atentamente por saber da relevância de tudo que era dito. E do valor que havia em ser escutado. Principalmente para aquelas crianças, tão pouco visíveis pro mundo. Viver naquela favela já tão estigmatizada era mais penoso ainda pela carga de preconceito que colocava nas costas dos seus moradores.
De repente, começaram os fogos. Minhas sobrancelhas levantaram, como se isso me fizesse ficar mais atento, ouvindo e vendo melhor. Falei, como se brincando, mas à vera: “vamos rápido, pessoal, não quero dormir aqui hoje, não”! Os fogos continuavam e pareciam vir da entrada da favela, que fica na linha do trem, mas vinham também da Linha Vermelha. De repente, o silêncio. Eu não sei explicar, mas aquele silêncio foi o maior que já ouvi. E somente dias depois, lembrando daquele momento, foi que me dei conta de que o silêncio é ouvido. E a sensação era parecida, muito de longe, com o silêncio que nos surpreende ao anoitecer, quando percebemos que algum motor foi desligado e que estávamos provavelmente ouvindo-o o dia todo.
Até os passarinhos tão cantantes da favela se calaram. Olhei pras crianças com cara de surpreso e o Jefferson, adivinhando o que eu queria saber, me respondeu: “é o caveirão”! Fui até sala ao lado, de onde podia, de cima de uma cadeira, olhar pelo basculhante, a uma distância razoável da janela, e com alguma segurança de que não seria visto da rua. Havia uma movimentação pequena, mas brusca. Os poucos moradores que ainda passavam, o faziam apressadamente e sempre entrando em algum lugar: na loja de material de construção, na padaria, em algum portão... Enquanto isso, com passos precisos e curtos como num técnico e frio balé, alguns homens armados - em sua maior parte com fuzis - e vindos do lado da linha do trem, avançavam do extremo da rua, correndo alguns metros e se escondendo atrás de finos postes de luz que mal os encobriam. Era a polícia civil, o CORE.
Do lado de cá, bem abaixo de onde estávamos, a movimentação era diversa. Alguns homens trocavam as suas camisetas, sem que nisso houvesse algum sentido aparente. Tiravam umas e colocavam outras, sem uma cor dominante que sugerisse um uniforme ou coisa parecida. Recebiam as camisas de mulheres que levavam as outras. E se mexiam também, só que recuando em direção aos fundos da favela (dizem algumas pessoas que sua facção opta pelo não enfrentamento da polícia, preferindo o acerto de contas subterrâneo da corrupção). Também tinham um ritmo os seus passos. Mais nervoso, quase frenético, eu diria, mas havia alguma orquestração, algo combinado. As armas visíveis eram de menor porte: no máximo pistolas, mesmo a gente sabendo, por ter visto em inúmeras outras ocasiões, que na favela havia fuzis e metralhadoras. Mas ali, elas não eram vistas.
Do basculhante da sala ao lado, sempre à distância para não ser visto da rua, pude identificar de onde vinha o único ruído então audível: era o caveirão, que deslizava lentamente pela rua lateral. Não o do BOPE que, diziam as crianças, era bem mais aterrorizante, com suas canções (se é que se pode chamar a isto de canção) sinistras, falando de violência, da morte, do além, das almas... O do CORE era menos sinistro, apesar da cor escura e sem qualquer brilho que sugerisse alguma luz. Mas era muito assustador, remetia às trevas, principalmente para mim que nunca havia visto nenhum deles em atividade.
Foi então que aconteceu uma das coisas mais surpreendentes que vi em toda a minha vida. No meio do cruzamento da rua principal, onde teoricamente poderia haver um confronto entre os bandidos e os policiais, uma mulher negra - muito magra e alta - e uma outra, mais clara e baixinha, ambas aparentemente com bebês no colo, começam a atravessar de um lado para o outro, passando no meio do possível fogo cruzado. Fiquei quase sem palavras e, não acreditando que em seus colos houvesse bebês, perguntei ao Jorge, que estava ao meu lado: “são bonecos”? “Não”, me respondeu ele. “São filhos delas, mesmo. Elas são viciadas, trabalham pros bandidos. Elas fazem isso porque os bandidos mandam, pra eles poderem se ajeitar melhor aqui por trás”. Eu, sem acreditar, dizia “não é possível, cara. Como que elas são mães e fazem isso? Devem ser bonecos ou trouxas de roupa que elas estão carregando...”
Algum tempo depois, logo a seguir a uma movimentação maior dos policiais que se aproximavam do lado em que estávamos, as mesmas mulheres voltam, dessa vez com carrinhos de bebês, sendo que a mais alta, puxava pela mão um outro menino de uns 3 ou 4 anos. Eu só consegui soltar um “filha da puta”, que foi seguido das risadas de algumas das crianças que permaneceram com a gente. E, entre assustado e estarrecido, me perguntei quanto valeria a vida daquelas crianças para elas mesmas... Se as suas mães as colocavam literalmente no meio do fogo cruzado, contrariando todos os instintos mais básicos da humanidade e da Vida, quanto aquelas crianças achariam, ao crescer, que suas vidas valiam?
Acordei triste e desanimado no dia seguinte. Mais triste ainda fiquei quando o Jorge me ligou de manhã e disse: “Não falei? As duas estão jogadas pólas ruas da favela, ainda doidas, cheiradas, sujas... Passaram a noite toda cheirando e fumando o que ganharam dos bandidos pelo trabalhinho de ontem...”
Senti – a ainda sinto quando conto essa história que presenciei e desejei que fosse sonho – uma enorme vontade de chorar...
domingo, 28 de março de 2010
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