domingo, 27 de maio de 2012


Saúde da Família na Maré

O barulho ritmado do helicóptero assusta, seu som é grave, ao contrário do som dos helicópteros comuns. Esse que passa sobre nossas cabeças pra lá e pra cá, lembra o Apocalypse Now: pôpôpôpôpôpôpôpô... Parece uma cena de filme quando escrevo, mas é como filme de terror. As crianças se perfilam sinuosamente no pátio do CIEP, surpreendentemente indiferentes. Se já é difícil ordenar as filas dos alunos normalmente, num clima destes, mais ainda. As professoras – não tem professores homens – olham para o céu a todo instante apreensivas. Fogos pipocam a todo instante de um lado, de outro, mas a rotina continua. As pessoas só passam mais apressadamente pelas ruas.
O posto de saúde está vazio, quando chega uma senhora pra eu atender. Consulta de rotina, está escrito no seu cartão. Ela diz estar nervosa com os fogos, o clima da área... Sua pressão está 22 por 12. Ela diz que quando tem operação – palavra apreendida da mídia para falar das grandes ações da polícia nas favelas – fica assim mesmo... Conversamos, lhe dou um ansiolítico que trago na bolsa para essas eventualidades. Algum tempo depois, a pressão cai para 16 por 10 e ela vai embora.
Logo depois a enfermeira me pergunta se pode dar número para eu ver um aluno do CIEP que levou um chute no saco. É um garoto de 8 anos, chega curvado, numa posição conhecida dos homens que já jogaram bola. Dói muito, muito mesmo! Ele vem amparado pela professora, tem a testa franzida, tensa, cílios ainda molhados de lágrimas, cara de amedrontado e zangado. Pergunto o que foi, a professora responde, ele calado... Peço pra ele abaixar a bermuda pra eu examiná-lo. Nada demais, atesto. Pergunto se dói muito, ele faz um bico de raiva e confirma. A professora conta que dois meninos do lado de cá o pegaram na hora da confusão do helicóptero blindado passando sobre a escola, um o imobilizou e o outro chutou seu saco. Ele, Douglas, é do lado de lá... Uma comunidade, uma facção, outra comunidade, outra facção. Um valão dividindo as duas e as crianças vestindo a camisa da facção dos seus lados. Pergunto o que doeu mais, se o chute ou a covardia. Finalmente, ele fala alguma coisa, os olhos novamente molhados: na hora, doeu o chute, agora tá doendo a covardia, disse ele.
Algum tempo depois, o gerente entre na sala e diz: “vamos embora que ligaram falando pra fechar a unidade. Mataram um policial do Core...” Sem falar mais nada, fechou a porta e sumiu.
Ao sair da favela, sol a pino, me amedrontam o silêncio profundo e o vazio das ruas, nem mesmo os cachorros a gente vê como habitualmente... Só um ou outro morador passam apressados, mas vejo uns meninos de uns 13, 14 anos em grupo, caminhando lentamente, falando alto, como que a provar que são imortais... Por isso morrem tanto e tão facilmente!
Entro na Linha Vermelha e agradeço ao meu anjo da guarda: já dei tanto trabalho pra ele, que tenho medo de ele cansar. Mas ele é leal, me acompanha sempre e abre suas asas largas generosamente sobre mim. É confortador crer na sua presença, mas se eu morasse lá, acho que ele não dava conta...


Exte texto foi postado em 14 de março no facebook e aqui, fiz acréscimos alguns de relatos que à época não pude fazer.

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