sábado, 2 de junho de 2012


QUERIA TANTO POSTAR POESIAS...

A primeira impressão era bastante assustadora. Os gritos ininteligíveis, mas claramente agressivos de mulher atravessavam o portão, alcançavam a rua e nos atingiam. A demora em sermos recebidos também inquietava. Tínhamos três pessoas para visitar naquela casa: Francisco, Maria e Marlene. Mas somente os gritos da mulher respondiam aos nossos chamados. Até que uma senhorinha miudinha, velhinha, veio até o portão e nos falou alguma coisa bem baixinho, sem que desse pra gente escutar. Estiquei o pescoço, perguntei: “como?” e ela pareceu não escutar. Depois, pude constatar que não escutara mesmo!
A outra mulher veio e abriu o portão, recriminando a velhinha: “mamãe, sai daí, deixa eles entrarem, são os médicos!”
Passamos pelo portão e ela falou: “com essa doida aí, não dá pra entrar pela sala. Vamos por ali!” disse, referindo-se à mulher que gritava e indicando uma passagem lateral. Fomos, então, pelo lado da casa, atravessamos a cozinha e logo a seguir, uma porta que ela apontou, mostrando o senhor que a gente iria atender. O cheiro de mijo era fortíssimo. O velhinho tão sorridente quanto encarquilhado se mostrava encantado com a nossa presença. A mulher que nos abriu o portão e nos guiava, que agora sabíamos ser filha dos velhinhos, subiu na cama para ligar o ventilador, cujo fio ficava pendurado num canto do quarto somente acessível por ali. O ventilador não ligava e ela reclamava. A falta de lâmpada no teto ampliava a opressão que eu sentia. Seu Francisco era muito simpático. Sua lentidão para responder às perguntas era agravada pela filha que o interrompia, atrapalhando sua fala. Pedi que ela o deixasse falar, sem pressa e, se foi clara a alegria dele com minha intervenção, também o foi a insatisfação dela, que parecia ter pressa. Ao ver que tinha 91 anos, disse a ele que fazia questão de ser convidado pra festança dos cem anos. Ele sorriu, olhar brilhante de criança. Sua saúde era ótima, falei que coração como o dele não se fabricava mais e ele sorriu fingindo modéstia, com um levantar de sobrancelhas.
Fui atender dona Maria, que manifestava ansiedade por também ser ouvida. Seu marido, curioso, revelava interesse em tudo que era dito. A filha se metia também, dizendo ser ela quem cuidava deles, ela quem sabia... E eu querendo ouvir a velhinha, novamente tive que dar um cala boca na filha. 
Até que chegou a hora da Marlene. Uma outra irmã que chegara pouco antes, dona Maria e a filha que nos recebera foram unânimes em dizer que seria impossível consultá-la. “Ela não fala coisa com coisa, só fica aí gritando”, era clara a má vontade com ela. “Já teve derrame, mas não toma os remédios de jeito nenhum”. Depois de obter algumas informações sobre seu adoecimento (soube que o primeiro surto foi durante a gravidez do terceiro filho, hoje um “menino formidável”), fui até a sala onde ela ficava. Deitada num colchonete, só de fralda, uma mulher de uns 50 anos mostrava a face mais dura da loucura: a miserável condição do descuido, do afastamento, da solidão. Me inclinei em direção a ela e perguntei se ia tudo bem. Uns grunhidos foram a resposta. Perguntei se alguma coisa a incomodava, ela gritou sons ininteligíveis, mas expressivos. Sim, ela me respondeu que alguma coisa a incomodava: pegou um pedaço de papelão que fazia de abanador e se refrescou, agitando-o freneticamente próximo ao rosto. O suor escorria até o pescoço e não estava calor. Perguntei se o calor a incomodava muito, ela assentiu com um grunhido que só podia significar “sim”. Pedi pra que apertasse minha mão para aferir sua força muscular. Sua mão esquerda era forte, a direita tinha a seqüela do acidente vascular. Elogiei sua força, mostrando surpresa, e ela riu orgulhosa e começou a se balançar para a frente, fazendo uma báscula, até que se levantou e se sentou na cama. Manifestei espanto com sua capacidade e ela sorriu sem modéstia, mas com o mesmo levantar de sobrancelhas que seu pai fizera poucos minutos atrás. Ela quis apertar mais a minha mão e fez força e sacudiu meu braço e começou a tremer e gritar de tal forma que senti um arrepio me atravessar. Pensei nos meus santos e com meus botões: “tenho que segurar esse tranco!” E vibrei junto com ela até ela parar. Ela riu. Estávamos amigos, pensei. Felizmente ela confiou em mim. Falei que ia ver seu pulso, depois fui auscultar seu coração... Ela puxou o seio, me mostrando o bico, me pareceu que eroticamente. Continuei ouvindo o coração, olhar muito sério, disse que estava tudo bem, apesar da freqüência estar em 104 (Normal de 60 a 80) e que ia medir sua pressão. Peguei seu braço e aferi, espantado: 230/160. Me levantei e lhe disse que ela ia precisar de tomar um remedinho. A irmã, do corredor, disse que ela não tomava de jeito nenhum. Eu falei alto para que todos ouvissem: “vou dar um remédio pra melhorar esse calor que você sente, viu, Marlene? Pra você se sentir mais confortável, ficar mais feliz”. E me levantei, dizendo que voltava. Falei pra Dany (ACS) quanto estava a pressão, a irmã reclamou um bocado mais e me disse, então que eu tentasse lhe dar o remédio. Fomos até a cozinha, peguei o Atenolol, um copo de água fresca e voltei à sala. Dei-lhe a mão para que se sentasse, e ofereci o comprimido. Ela grunhiu algo que significava ruim. Eu disse, “não, esse é bom, vai melhorar teu calor, diminuir esse suor que te incomoda, você vai ficar mais feliz”. Ela pegou o comprimido, jogou na garganta, bebeu a água e assentiu com a cabeça e um som que era próximo de bom. Sorri pra ela e disse que ia voltar pra gente conversar mais um pouco e saber como ela estava num outro dia.
Quando saí ao corredor, todos estavam surpresos, dona Maria me agradeceu por ter ido e agradecia a Deus por ter me enviado... Confesso que fico envergonhadíssimo dessas manifestações de gratidão por tão pouco...
Saímos à rua, eu e Dany, só comentei com ela: “que barra pesada!”, e seguimos. Meu corpo doía, comecei a sentir dor de cabeça e falei pra ela que devia ser um pouco de sinusite, devido à gripe. Só mais tarde é que compreendi que ali naquela sala, ela descarregou através do meu braço um bocado dos seus sofrimentos. Pena que é muita coisa pra se resolvida assim. E meu cavalo é pequeno...

Um comentário:

  1. para Marlene, e para aquela família, seu cavalo foi enorme...

    aos meus olhos, também.

    bj

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