quarta-feira, 30 de março de 2011

Soró


O Soró morreu! Pela segunda vez em um ano, escrevo neste espaço um obituário. Há menos de um ano, foi-se o Caroço, personagem tão incrível, que uma amiga escreveu uma mensagem me perguntando se ele era real ou inventado. Tive que publicar uma foto dele pra provar sua existência. 
Agora, foi-se o Soró. Coloco suas fotos, não por uma possível excentricidade – pelo contrário, ele era previsível e simples até demais – mas para iluminar uma pessoa que, como milhões mundo afora, vivem suas vidas numa quase total invisibilidade. 

Ele era um discreto trabalhador do bar da esquina. Escolhia com carinho as cervejas mais geladas para aqueles de quem gostava. Era turrão e, às vezes, implicava com alguém por uma bobagem e, então, a cerveja escolhida era quente. Mas ele negava, dizia que tinha escolhido a melhor.
Tinha quase 60 anos, apesar de não aparentar e de carregar o diagnóstico de hipertensão maligna. Tratei dele por um tempo, após tê-lo atendido com uma indisposição leve no ano passado. Naquele dia, medi sua pressão: 21 por 14. Disse-me que a pressão não controlava com medicamento porque era maligna, lhe haviam dito no hospital. Apesar do vocabulário limitado, empregava a palavra com precisão, reverência e resignação. Haviam dito pra ele que a pressão dele era assim, então, o que fazer?
Comecei a tratar dele e, como a pressão não baixasse facilmente, quis saber se estava tomando os remédios direito. Quando ele me explicou como fazia, apontando para os nomes dos medicamentos na receita, estranhei sua sinalização confusa: “Você sabe ler?”, perguntei. Ele disse, abaixando os olhos: “Não. Mas eu tomo direito os remédios.” Vi que não era bem assim, então comprei duas caixinhas de guardar e classificar comprimidos por dia e hora. O efeito foi muito marcante. Após dois meses, a pressão dita maligna estava praticamente controlada. Em novembro do ano passado, medi novamente e estava precisando de alguns ajustes, mas num nível bastante aceitável para quem teria uma hipertensão maligna.
Em dezembro, ele me falou que lhe telefonaram do hospital em que se tratara, propondo um novo tratamento, com direito a consultas e exames de três em três meses. Então, me perguntou o que eu achava. Disse que seria interessante ele ser acompanhado num hospital público. Na sexta-feira passada, o vi jururu, sentado numa cadeira do lado de fora do bar. Parei e perguntei o que estava havendo. “Estou meio cansado”, me disse. Perguntei sobre o tratamento e ele falou: “Tenho consulta na segunda”. Eu disse: “então fala desse cansaço”. Dia seguinte, passei em frente e o dono do boteco se queixou de que ele não aparecera. Falei que em mais de vinte anos, nunca ouvira falar de uma falta sua ao trabalho. “Alguma coisa aconteceu,” lhe disse.
Na segunda de manhã, a notícia de sua morte. Deixou um filho adotivo, já rapaz, que pegara pra criar porque era “muito bonzinho e a mãe tinha largado ele sozinho”, me falou tempos atrás. Aos domingos, ia pra Nova Iguaçu ver sua mãe e o garoto, que morava com ela. Levava o pagamento que recebia no sábado, depois de tirar o mínimo necessário para passar a semana. 
Aqui, na zona sul, morava num barraco pobre, sem banheiro, sem janela e cheio de goteiras na Santa Marta, pelo qual pagava R$ 80 por mês, onde só dormia e foi encontrado morto, após dois dias. Mesmo depois da chegada da UPP, que não trouxe saneamento, fazia xixi numa caneca e jogava na vala que passava à frente do barraco. Cocô, preferia fazer no bar em que trabalhava. Banho, só de cuia... Ou então quando ia pra casa da mãe, em Nova Iguaçu. Eu brincava com ele, dizendo que tinha casa na serra e na baixada... Estava sendo despejado e ia se mudar pra Rocinha porque com a UPP, os imóveis valorizaram e o seu ia ficar muito caro! Mas não deu tempo. Foi embora antes.
Ele sabia de muitas coisas que aprendera desde que viera do Ceará, ainda novo. Uma delas, muito interessante: batia no casco da cerveja com o abridor e, pelo som, sabia se estava congelada. Som surdo, abafado, conteúdo sólido. Som agudo, estridente, podia abrir! Não falhava nunca! Mas não sabia ler e, tenho minhas dúvidas se tomava seus remédios direitinho... Acho que sua causa mortis foi o analfabetismo...
Fui no Aurélio ver o que significa Soró, que eu achava ser nome de um pássaro, algo próximo de Socó, por causa de suas pernas finas. Surpresa: o único significado de Soró é baseado, cigarro de maconha! Ele dizia que não sabia o significado... É possível. Ou não... A gente nunca vai saber.

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